Era sempre assim, não importava o dia
da semana ou a época do ano, fizesse calor ou muito frio. Também não importava
quem eram aquelas pessoas ou suas idades. A noite mal começara e já fervilhava
na grande cidade, fosse aqui ou em um distante lugar do mundo, e fora raras
exceções, todos buscavam as mesmas duas coisas, os dois desejos mais
perseguidos e, ao mesmo tempo, fáceis e banais, diversão e sexo.
No jargão do comportamento humano, sexo
poderia abranger desde um beijo fortuito, roubado de modo insuspeito, ou uma
mão que passeava e avançava com mais ousadia e ímpeto, às vias de fato, e era esse
êxtase da procura que motivava e agitava as pessoas, de maneira consciente ou
não.
Já diversão podia ser compreendida
como um termo mais amplo e, em muitos casos, envolvia o próprio sexo. E lugares
propícios a qualquer tipo de diversão não faltavam. Baladas, casas da moda,
restaurantes clássicos ou exóticos, lugares requintados ou rústicos, para todos
os gostos e padrão social. Nesse sentido, a noite na metrópole era viva e se
agitava como um animal selvagem, com fogo nas entranhas e sede de movimento
ininterrupto.
E nessa mescla de pessoas e tribos,
cada qual possuía seus próprios caminhos e cantos, alguns espetacularmente
iluminados e chamativos, enquanto outros, escuros, sombrios e escondidos.
Todavia, existiam aqueles que não se
contentavam com variedade e, julgando-se especiais, se autoproclamavam
descolados, indivíduos que, sabe-se lá por que, era invejados por muitos, em
suas atitudes, modismos e posturas. Apesar de tal adoração silenciosa, tais
pessoas procuravam recantos de exclusividade como alternativa à massa de
consumo e sabiam de espaços diferentes, sem luzes chamativas por fora ou
letreiros que brilhavam. E de todos esses lugares, o mais alternativo era conhecido
por La Macchina.
Construído dentro de um antigo galpão
de fábrica, com sua aparência exterior feia e suja mantida inalterada, era
isolado acusticamente e não possuía letreiro ou qualquer outra forma de
identificação. A propaganda à boca miúda dava o tom de exclusividade. Também
não se formavam filas. Assim que a capacidade da casa se completava, independente
da hora, a porta externa era fechada e trancada, até porque as pessoas
presentes só deixariam o local quando com a manhã já avançando, e nada do lado
de fora denunciava o quê ali se passava. Basicamente frequentada por jovens,
era um meio termo entre o requinte e o rústico, e comportava frequentadores das
mais diversas classes sociais.
Talvez tenha sido essa mescla de tipos
que o atraiu; talvez, apenas o puro acaso, ninguém nunca saberá.
O som marcante, martelado nas batidas
eletrônicas, ecoava forte na pista agitada quando a porta interna, em uma parte
mais isolada do recinto, junto aos caixas e à saída, se abriu de modo inesperado.
Dois seguranças, de pronto, se posicionaram à frente de um desconhecido que
entrara, ambos tomados de surpresa, querendo compreender como ele ingressara
depois que a casa havia sido trancada, mas de súbito, como que encantados com o
que viam, lhe abriram passagem, quase lhe fazendo uma reverência,
inesperadamente surdos para todo o demais.
O estranho vestia uma túnica branca,
que lhe cobria o corpo como um todo, somado a um par de sandálias douradas, a
mesma cor do cordão que lhe estreitava a veste à cintura.
Sem demonstrar qualquer incômodo com o
som alto e as luzes coloridas, fortes e brilhantes, ele se infiltrou no meio da
multidão, sequer se dando atenção de que, um a um, os frequentadores deixavam
de fazer o que faziam e lhe abriam passagem, passando a admirá-lo, sem perceberem
que à medida que o desconhecido se aproximava do centro da pista, a música ia
diminuindo cada vez mais, como guiada por dedos mágicos de um DJ fantasma, até
cessar por completo.
No entanto, por mais que o observavam,
era impossível para qualquer um descrevê-lo. Certamente, não era um homem
travestido de mulher, o mesmo se dando em relação a uma mulher com roupas de
homem. Aquele ser trazia uma mescla categoricamente singular de masculino e
feminino em um único corpo, uma amálgama das características de ambos os sexos.
Sem esboçar qualquer palavra, absoluto
no silêncio que agora imperava, puxou uma garota para si, estreitando-a contra
o corpo, e a beijou na boca, um beijo lânguido e demorado. Em seguida, fez o
mesmo com um rapaz próximo.
Quando desatou o cordão e deixou a
túnica cair, revelou um par de asas brancas e altivas e, ainda assim, ninguém
estranhou, todos tomados por um fascínio que não os fazia desgrudar os olhos
daquele verdadeiro ser celestial.
Por fim, dirigindo-se a todos, o anjo apenas
disse:
– Amem-se...
A música retornou como um trovão,
sacudindo a tudo e a todos, em toda sua intensidade. As pessoas se atiraram
umas às outras e, em um frenesi de beijos e mãos, roupas foram tiradas ou
rasgadas, atiradas longe e esquecidas. Pares e grupos se procuraram, conforme
as tendências sexuais, e se entregaram à pura luxúria, a loucura mais louca do
louco amor, forte e firme, contudo, sem violência. Nada acontecia sem o
consentimento mútuo e recíproco. A insanidade se revelava controlada e
prazerosa, e o caos, abençoado por um anjo, o anjo do amor.
Exultante, o ser ambíguo sorriu de
forma delicada e contundente ao mesmo tempo. Como em resposta aos sentimentos
ali gerados, o par de asas se distendeu às costas. Aquele era seu dever divino,
semear o amor entre os mortais.
* * * *
Em breve amanheceria.
A música há muito havia silenciado,
bem como o frenesi. Apenas, as luzes coloridas alternantes davam uma tônica
surreal ao ambiente, onde agora restavam apenas corpos inertes, muitos
debruçados uns sobre os outros, todos exaustos e exauridos de suas forças
físicas e mentais até o extremo fim.
Humano algum permanecia sem
consequências na presença de um anjo. Havia um preço; para tudo sempre havia um
preço.
A criatura ambígua observou a todos
por um momento, satisfeita. Ele não era um celestial qualquer, e até mesmo em
sua morada havia aqueles que consideravam os de sua espécie apenas uma lenda.
Eram chamados de Comum de Dois, o sobregênero que trazia os dois gêneros
em um só, e seu atributo era o amor, amor inigualável, aquele que nem mesmo em
sonhos os humanos conseguiriam alcançar.
Havia muito a ser feito, ainda, e os
dias eram poucos e curtos. Ainda assim, dispensou mais um olhar para aquelas
pessoas, corpos que compunham um mosaico cruel, porém, sem dúvida, divino.
Seu sorriso se alargou. Ele estava satisfeito.
Cumprira sua missão e a razão de sua existência.
Mais do que nunca, todos ali agora compreendiam
o significado de “ama a teu próximo como
a ti mesmo”.
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