sábado, 25 de maio de 2013

PERFIL DO AUTOR - CONTO - Oscar Nestarez



Sugestão de fundo sonoro:


Vamos, só mais um pouco.
Continue caminhando. Não falta muito. É logo ali, à beira daquele penhasco. Mais alguns passos.
Pronto.
Agora olhe lá longe.
Siga meu dedo. No horizonte, perto daquelas montanhas distantes. Vê? Depois dessa planície imensa, embaixo da gente. Já vem vindo. É, é aquela nuvem escura.
Você está bem?
Chega mais perto, então. Logo vai ficar muito frio.

Não, não são berros. Nem uivos. Parecem, mas não são. Tente acreditar que não.
Tente não ouvir.
Tente abrir mão da audição, pelo menos agora. Você não vai precisar dela.
O que há para se ouvir não é nada agradável.
Sim, o vento é gelado. Pode me abraçar, eu estou acostumado.
Você treme. É só de frio, não? O medo não seria boa companhia aqui.
Calma, logo virá.
Vê? A nuvem está próxima. Engolindo tudo por onde passa.  
Nem tente enxergar. Você vai ver quando chegar a hora. Há muito a ser visto. Não é por isso que você está aqui? Não é por isso que você pediu que eu te trouxesse aqui? Tudo há seu tempo.
Aproveite a vista. Pelo menos aquela que a nuvem está poupando.
Não, não são uivos. Nem lamentos. Imagine que é o vento, passeando e provocando. Não responda.
Vai ficar cada vez mais alto. Já disse para você se esquecer de ouvir.
Tudo o que você precisa ouvir é a minha voz.
Grave, monocórdia e sussurrante.
O resto é silêncio.
Já está aí. Sim, é muito frio.
Agarre-se a mim. Por um instante, você não vai ver nem ouvir. Só vai sentir.
Eu serei tudo o que você terá.
Minha voz, tudo o que você ouvirá.
Meu corpo, tudo o que sentirá.
Agora.
Você continua ouvindo os lamentos. Os uivos, os berros, que seja.
Esqueça-os.
Ou os uivos vão ganhar bocas. As bocas vão ganhar rostos. Os rostos, corpos. E os corpos, membros.
E, acredite, você não quer ver nada disso.
Eu não quis.


Há quanto tempo eu venho aqui?

Sempre.
Mas “aqui” foi se transformando.
Não me lembro de quando descobri este lugar, mas lembro-me das primeiras vezes em que vim.
Sozinho.
Eu chegava à beira do penhasco, e a visão era deslumbrante.
Nunca tinha visto nada igual. Paisagem de sonho. Indescritível.
Montanhas distantes e protetoras. Vales verdes e indolentes. Estradas misteriosas de rumo remoto. Bosques perfumados e intocados.
Eu vinha para cá sempre que podia.
Queria descobrir tudo.
Ver tudo.
Antes, chegava e me saciava a olhar.
Ficava sentado à beira do penhasco, admirando, encantado.
Aos poucos veio a coragem.
Até que uma vez, sem hesitar, tomei impulso e me lancei ao abismo.
Pouco antes de pousar na planície, um pé-de-vento acolheu-me no colo.
E, aninhado, eu flutuei.
Fazia frio, mas o colo era terno e me aquecia.

Você está me ouvindo?
Chegue mais perto.
Ouça só a minha voz.

Primeiro eu circulei pela vasta planície, penteando a relva e saudando a vida que se escondia ali.
O vento então me carregou para os bosques. Lá eu entrei e passeei languidamente, por longas horas.
E saí com visões que me acompanharão para sempre.
Depois dos bosques, fui a pradarias, montes, vales, cabanas remotas, estradas escondidas, charnecas, ermos e redenção.

(Já disse para esquecer os uivos, porque são enlouquecedores.)

Às vezes o vento me erguia rumo ao zênite.
Logo depois eu mergulhava.
O frio na barriga e os sentidos aguçados me deixavam extasiado.
Então eu sempre voltava e repetia o ritual.
Atirava-me ao vazio, era apanhado pelo vento e planava.
Assim foi durante milhares de vezes.
Era tudo o que eu queria.
O concílio de meus desejos mais profundos.
A minha fuga.
Ainda é, hoje.
Mas como eu disse, as coisas mudaram.
Eu nunca deixei de vir pra cá.
De fugir daquele mundo para mergulhar neste.
Vai ver foi por isso que não percebi a nuvem.

Sim. A nuvem negra. Essa que nos rodeia.

Na primeira vez que a vi, era como a fumaça de uma cabana afastada.
Um mero detalhe do meu horizonte místico.
Mas ela foi chegando. Lenta e imperceptivelmente.
“Uma tempestade”, passei a pensar. “Faz sentido”.
Indiferente, eu continuava flutuando pelo meu mundo.
Que diminuía.
A sombra da nuvem o devorava placidamente. E expandia seus limites, que eu não ousava ultrapassar.
Isso ocorreu durante anos.
Até que resolvi avançar na nuvem.
Lembro-me como se fosse hoje.
Atirei-me ao vazio.
Eu sentia muito medo, estava agitado. Não dissimulava, pois até então eu estava no meu elemento.
O vento me apanhou e rumamos triunfantes.
Aos poucos, chegam os uivos.
A nuvem está no horizonte, perto das montanhas.
Imóvel. Desafiadora.
O frio é cada vez maior.
Os lamentos também.
Comecei a sussurrar para me proteger deles.
Que não cessavam. Aumentavam.
A nuvem estava à minha frente.
Não havia volta.
Num rompante de loucura, atirei-me a ela.
Trevas espessas.
Nelas, o vento me soltou.
Era o último fragmento do meu mundo, ali.
Então caí uma queda sem fim.
O pavor me dominou.
E, como eu lhe disse, deu boca aos uivos, rosto à boca, corpo ao rosto e membros ao corpo.
Bocas carnívoras, rostos alucinantes, corpos disformes e membros brutais.
Eu caía a uma velocidade incrível, mas percebia tudo.
Os uivos agora eram ensurdecedores.
A dor das mordidas, lancinante.
O horror, infinito.

E tudo ecoando.
Tudo se repetindo, intermináveis vezes.

Como agora.
Não me solte.


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