Sugestão de fundo sonoro:
Vamos,
só mais um pouco.
Continue
caminhando. Não falta muito. É logo ali, à beira daquele penhasco. Mais alguns passos.
Pronto.
Agora
olhe lá longe.
Siga
meu dedo. No horizonte, perto daquelas montanhas distantes. Vê? Depois dessa
planície imensa, embaixo da gente. Já vem vindo. É, é aquela nuvem escura.
Você
está bem?
Chega
mais perto, então. Logo vai ficar muito frio.
Não,
não são berros. Nem uivos. Parecem, mas não são. Tente acreditar que não.
Tente
não ouvir.
Tente
abrir mão da audição, pelo menos agora. Você não vai precisar dela.
O
que há para se ouvir não é nada agradável.
Sim,
o vento é gelado. Pode me abraçar, eu estou acostumado.
Você
treme. É só de frio, não? O medo não seria boa companhia aqui.
Calma,
logo virá.
Vê?
A nuvem está próxima. Engolindo tudo por onde passa.
Nem
tente enxergar. Você vai ver quando chegar a hora. Há muito a ser visto. Não é
por isso que você está aqui? Não é por isso que você pediu que eu te trouxesse
aqui? Tudo há seu tempo.
Aproveite
a vista. Pelo menos aquela que a nuvem está poupando.
Não,
não são uivos. Nem lamentos. Imagine que é o vento, passeando e provocando. Não
responda.
Vai
ficar cada vez mais alto. Já disse para você se esquecer de ouvir.
Tudo
o que você precisa ouvir é a minha voz.
Grave,
monocórdia e sussurrante.
O
resto é silêncio.
Já
está aí. Sim, é muito frio.
Agarre-se
a mim. Por um instante, você não vai ver nem ouvir. Só vai sentir.
Eu
serei tudo o que você terá.
Minha
voz, tudo o que você ouvirá.
Meu
corpo, tudo o que sentirá.
Agora.
Você
continua ouvindo os lamentos. Os uivos, os berros, que seja.
Esqueça-os.
Ou
os uivos vão ganhar bocas. As bocas vão ganhar rostos. Os rostos, corpos. E os
corpos, membros.
E,
acredite, você não quer ver nada disso.
Eu
não quis.
Há
quanto tempo eu venho aqui?
Sempre.
Mas
“aqui” foi se transformando.
Não
me lembro de quando descobri este lugar, mas lembro-me das primeiras vezes em
que vim.
Sozinho.
Eu
chegava à beira do penhasco, e a visão era deslumbrante.
Nunca
tinha visto nada igual. Paisagem de sonho. Indescritível.
Montanhas
distantes e protetoras. Vales verdes e indolentes. Estradas misteriosas de rumo
remoto. Bosques perfumados e intocados.
Eu
vinha para cá sempre que podia.
Queria
descobrir tudo.
Ver
tudo.
Antes,
chegava e me saciava a olhar.
Ficava
sentado à beira do penhasco, admirando, encantado.
Aos
poucos veio a coragem.
Até
que uma vez, sem hesitar, tomei impulso e me lancei ao abismo.
Pouco
antes de pousar na planície, um pé-de-vento acolheu-me no colo.
E,
aninhado, eu flutuei.
Fazia
frio, mas o colo era terno e me aquecia.
Você
está me ouvindo?
Chegue
mais perto.
Ouça
só a minha voz.
Primeiro
eu circulei pela vasta planície, penteando a relva e saudando a vida que se
escondia ali.
O
vento então me carregou para os bosques. Lá eu entrei e passeei languidamente,
por longas horas.
E
saí com visões que me acompanharão para sempre.
Depois
dos bosques, fui a pradarias, montes, vales, cabanas remotas, estradas escondidas,
charnecas, ermos e redenção.
(Já
disse para esquecer os uivos, porque são enlouquecedores.)
Às
vezes o vento me erguia rumo ao zênite.
Logo
depois eu mergulhava.
O
frio na barriga e os sentidos aguçados me deixavam extasiado.
Então
eu sempre voltava e repetia o ritual.
Atirava-me
ao vazio, era apanhado pelo vento e planava.
Assim
foi durante milhares de vezes.
Era
tudo o que eu queria.
O
concílio de meus desejos mais profundos.
A
minha fuga.
Ainda
é, hoje.
Mas
como eu disse, as coisas mudaram.
Eu
nunca deixei de vir pra cá.
De
fugir daquele mundo para mergulhar neste.
Vai
ver foi por isso que não percebi a nuvem.
Sim.
A nuvem negra. Essa que nos rodeia.
Na
primeira vez que a vi, era como a fumaça de uma cabana afastada.
Um
mero detalhe do meu horizonte místico.
Mas
ela foi chegando. Lenta e imperceptivelmente.
“Uma
tempestade”, passei a pensar. “Faz sentido”.
Indiferente,
eu continuava flutuando pelo meu mundo.
Que
diminuía.
A
sombra da nuvem o devorava placidamente. E expandia seus limites, que eu não
ousava ultrapassar.
Isso
ocorreu durante anos.
Até
que resolvi avançar na nuvem.
Lembro-me
como se fosse hoje.
Atirei-me
ao vazio.
Eu
sentia muito medo, estava agitado. Não dissimulava, pois até então eu estava no
meu elemento.
O
vento me apanhou e rumamos triunfantes.
Aos
poucos, chegam os uivos.
A
nuvem está no horizonte, perto das montanhas.
Imóvel.
Desafiadora.
O
frio é cada vez maior.
Os
lamentos também.
Comecei
a sussurrar para me proteger deles.
Que
não cessavam. Aumentavam.
A
nuvem estava à minha frente.
Não
havia volta.
Num
rompante de loucura, atirei-me a ela.
Trevas
espessas.
Nelas,
o vento me soltou.
Era
o último fragmento do meu mundo, ali.
Então
caí uma queda sem fim.
O
pavor me dominou.
E,
como eu lhe disse, deu boca aos uivos, rosto à boca, corpo ao rosto e membros
ao corpo.
Bocas
carnívoras, rostos alucinantes, corpos disformes e membros brutais.
Eu
caía a uma velocidade incrível, mas percebia tudo.
Os
uivos agora eram ensurdecedores.
A
dor das mordidas, lancinante.
O
horror, infinito.
E
tudo ecoando.
Tudo
se repetindo, intermináveis vezes.
Como
agora.
Não
me solte.
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