O ULTIMO ANJO
"E Deus disse:
Eis que Adão se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal; agora, pois,
expulsemo-lo do Paraíso, para que não suceda que ele estenda sua mão, e tome
também a árvore da vida, e coma, e viva eternamente"
(Gênesis
3-20)
A Primeira coisa que
vocês precisam saber a meu respeito é que eu já fui um anjo. Já fui – passado.
Nada a ver com aqueles garotos gordinhos e com asas da arquitetura barroca. Ou
mesmo os maravilhosos seres de luz descritos no Antigo Testamento. Os anjos são
diferentes. Embora dotados de poderes extraordinários, esses mensageiros alados
nem sempre carregam a Palavra de Deus. O meu caso é diferente. Eu era um deles,
um anjo; e bastante poderoso. Eu tinha toda uma legião de Querubins sob meu
controle. Tinha um lugar junto aos servos de Deus, um trono e uma moradia no
Paraíso. Durante muito tempo eu acreditava estar fazendo a vontade de Deus,
acreditava estar seguindo a Palavra. E então, eu descobri que a Palavra estava
sendo corrompida, e usada para justificar a vontade de poucos. Então eu me
rebelei. O que vou contar adiante é a minha história, a minha luta. Ela é
dedicada à memória de todos aqueles que acreditaram, assim como eu, que
poderiam resgatar o verdadeiro sentido da Palavra de Deus, que poderiam
resgatar o simples valor da Justiça. Para todos esses.
Que Deus os tenha.
****
Antes que eu inicie
aqui esta humilde narrativa, permita, leitor, que eu me apresente. Na língua
moderna, ou naquela que permite que a vós se faça a compreensão, o meu nome
seria Ablon. Talvez não exatamente, em virtude das mudanças lingüísticas que a
sua espécie costuma impor através dos séculos.
Confesso que é para
mim motivo de grande curiosidade saber como esses escritos chegaram a vossas
mãos, quais foram as circunstâncias e em que época. Há carros voadores? O homem
já dominou a viagem intergalática? Trata-se de um futuro longínquo a quem estou
escrevendo ou de um futuro próximo marcado pela economia de consumo e pela
geração video-game? Provavelmente eu nunca encontrarei essas respostas, mas
isso não me preocupa, afinal há inúmeras perguntas sem respostas mesmo para
alguém como eu. Quanto mais se vive e quanto mais se encontra respostas, mais
elas se multiplicam em mais perguntas, culminando em um abismo sem fim. A
literatura moderna tem apelado para os romances fantásticos de forma tão
espetacular nos últimos tempos que me camufla de maneira perfeita. Assim, esses
escritos podem alterar sua inocente visão da realidade. Caso isso ocorra de
maneira a causar algum dano, não se preocupe. Considere isso como uma obra de
ficção.
Agora vamos falar um
pouco de mim. Escrevo aqui no final do século XX, o que me concede dois
milhões, não, dois milhões, sete mil e trezentos e quatro anos... eu posso
estar errado em algumas décadas. A minha espécie foi criada para auxiliar o
trabalho do Senhor. Fomos conhecidos por uma centena de nomes em diversas
culturas, dentre eles: anjos, arcanjos, querubins, serafins e outros. Nada
disso tem alguma importância. O fato é que nós realmente sabemos a verdade em
relação a Deus e nem tudo que se diz Dele corresponde exatamente à verdade. A
nossa casta foi fragmentada e hoje muitas entidades lutam entre si.
Durante muitos
séculos nós estivemos sozinhos na terra. O Paraíso era habitado apenas por
animais e o Espírito de Deus corria sobre as águas. Uma determinada espécie de
animais evoluiu de forma a se igualar à nossa capacidade de raciocínio, e Deus
resolveu conceder-lhe uma alma dando vida a Adão e Eva. Alguns conselheiros do
Senhor, ou seja, alguns de nós, não admitiam o fato da concessão da alma divina
a simples animais, porém decidiram não questioná-Lo, como forma de obediência.
Acharam que seria mais interessante se usassem isso em seu favor.
Os que mais odiavam
os homens constituíam a alta cúpula do conselho. Miguel, Gabriel, Rafael, Uriel
e os grandes. E dentre eles estava Lúcifer. Os grandes começaram a promover um
castigo em massa aos humanos, e a matar em nome de Deus.
Eu me lembro muito
bem. O conselho era presidido por Miguel e ele tomava todas as decisões. O
Senhor nunca se via presente, embora a sua força se fizesse sentir em todo
lugar. Nenhum de nós jamais viu a face Dele. Miguel se achava o todo poderoso.
Levava à tona suas vontades, justificando como a vontade Dele. A vontade
Dele... Destruir vilas inteiras povoadas por mulheres e crianças inocentes?
Não, essa não era a Sua vontade e sim a de quem impunha a Palavra.
Então, decididos a
eliminar de vez os humanos, os arcanjos arquitetaram o dilúvio. A maioria de
nós foi contra. Você tem idéia de quantas pessoas inocentes foram castigadas no
dilúvio? E depois veio Sodoma, quando eclodiu a revolta no conselho. Muitos de
nós já estávamos fartos daquelas atrocidades, mas Miguel era muito poderoso
para ser questionado. Ele era o emissário do Senhor, mas Este nunca se
pronunciava pessoalmente. Quando a Palavra era questionada, Rafael sempre
levantava a questão: então quem criou todos nós? Por acaso ousa contestar o
Senhor? E todos se calavam.
Quando a revolta
eclodiu, muitos foram banidos, inclusive eu. Alguns, como Lúcifer, se
aproveitaram da rebelião para conseguir poder e foram devidamente punidos e
condenados ao abismo para sempre, na forma destorcida de demônios. Outros, como
eu, foram expulsos do Paraíso e condenados a vagar pela terra.
Eu me lembro daquele
dia como se fosse hoje. O conselho havia se reunido. Eu e mais dezessete
companheiros, que não se conformavam com a chacina promovida pelos arcanjos
superiores, organizamos uma resistência secreta. Secreta porque sabíamos que
qualquer questionamento às ordens Dele era passível de punição severa.
Conseguimos apoio de alguns grandes, inclusive de Lúcifer. Dos duzentos e
cinqüenta anjos, apenas dezoito participaram da resistência. Alguns apoiavam,
outros repugnavam, mas a maioria permanecia indiferente. Eles tinham medo das
conseqüências, eu não. Bando de covardes!
Quando Miguel
anunciou a destruição de Sodoma e Gomorra, tomamos a palavra em defesa dos
homens, mas fomos reprimidos. O dilúvio tinha matado tantos que pensávamos ser
o suficiente para eles, mas não. Enquanto eu me pronunciava, de maneira sutil,
Lúcifer se levantou. A princípio me senti aliviado por ter um dos grandes do
meu lado. Estava enganado. Em sua ânsia de poder, Lúcifer delatou todos os
dezoito membros da resistência, traindo-nos. A sua palavra valia, de qualquer
forma, muito mais do que a nossa. Em minha ira, parti para atacar o maldito,
mas sem chances. Ele era muito mais poderoso. Os dezoito se levantaram. Lúcifer
foi pego por trás e permaneceu fora de combate. Os outros grandes, não querendo
sujar suas mãos com sangue, ordenaram que os anjos menores atacassem. Nós
brandimos nossas espadas de fogo.
O que se deu a seguir
não precisa e nem seria agradável se fosse relatado em detalhes. Houve uma
batalha feroz no conselho. O Salão Celestial ficou imundo com o sangue divino.
Esta foi a primeira, mas não a última vez que houve batalha no Paraíso. A maioria
ficou gravemente ferida, inclusive eu. Alguns morreram, porém poucos. A nossa
capacidade regenerativa é algo realmente formidável, devo admitir. Durante a
batalha as nossas asas foram manchadas de sangue e nossas penas tornaram-se
vermelhas para todo o sempre.
Vendo que seus
lacaios estavam perdendo, Miguel, evitando arriscar-se em combate direto,
utilizou o seu poder para fazer com que nós caíssemos do Céu para a terra.
Fomos assim expulsos do Paraíso e recebemos a designação de Renegados. Eu não
gosto muito do termo, mas devo admitir que é aplicável. Fomos amaldiçoados.
Condenados a vagar pelo mundo dos homens por toda a eternidade e impedidos de
retornar ao Paraíso. Essa foi nossa punição.
A nossa chegada na
terra se deu de forma rápida e dolorosa. Quando caímos, todos nós estávamos
gravemente feridos e passamos alguns séculos escondidos para formular o que
faríamos dali para frente. Permanecemos ocultos por todo este tempo, nos
recuperando no único lugar onde não podíamos ser encontrados: as ruínas de
Enoque, a Primeira Cidade. O lugar era incrivelmente desagradável para nós,
pois havia uma sensação maligna muito forte ali: as almas daqueles que morreram
em agonia, daqueles que foram vítimas da catástrofe provocada pelo dilúvio.
Contudo, essa energia mística carregada de ódio e sofrimento era perfeita para
esconder a nossa aura benevolente. Os séculos que passamos escondidos nos deram
tempo para estudar um pouco da cultura dos primeiros mortais, que habitaram a
cidade fundada por Caim. E mesmo sem contato com eles, Enoque era o lugar certo
para nos prepararmos para a nossa entrada na sociedade humana. Aos poucos
aprendemos, através das obras de arte das ruínas, a incorporar hábitos humanos.
Percebemos que as nossas asas poderiam se aderir às costas formando uma massa
única, uma camuflagem perfeita. Descobrimos também que, como se não bastasse a
nossa maldição, Miguel tinha enviado uma grande quantidade de anjos menores em
nosso encalço. Havia um prêmio pela nossa cabeça, pela cabeça dos Renegados.
No final desses
séculos de exclusão, nós tomamos uma decisão: a fim de tornar a nossa captura e
eventual morte mais difícil, nos separaríamos e nos espalharíamos pelo mundo.
Esse foi o nosso grande erro. Não sei para onde os outros foram. Nunca mais os
encontrei. Talvez pelo fato de que, no princípio, nós fugíamos de onde
estávamos só de sentir a presença de um companheiro, a fim de não nos juntarmos
de novo.
Logo quando deixei as
ruínas da Primeira Cidade, em direção à Babilônia, soube que havia sucedido uma
guerra no Céu. Lúcifer havia se utilizado do fato de ter nos entregado para
conseguir posição e prestígio no reino dos anjos. Tomado pela sede de poder,
cometeu um pecado capital: a inveja. Inveja dos que estavam acima dele, inveja
de Deus. E não estava só, um terço dos anjos do Céu estava com ele. Essa foi a
segunda e última vez, por enquanto, que o Salão Celestial foi coberto de
sangue. Soube também que, em princípio, Lúcifer havia perdido a guerra e caído
no Inferno, um lugar detestável e imundo. No início pensei sobre a
possibilidade que nós, os Renegados, tivemos de ter caído lá. Hoje porém, eu
sei que isto nunca aconteceria. Lúcifer caiu no Inferno porque era realmente
mal, nós não. O pior de tudo: também soube que Lúcifer, agora um demônio,
culpava a nós por sua queda. Afinal, nós fomos de fato o início de tudo. Essas
últimas afirmações só vieram a se confirmar depois.
***
Em uma certa noite de
verão, a cidade de Babel estava sendo varrida por uma tempestade de areia como nunca
havia sido vista. Os mensageiros chegavam do norte trazendo as notícias dos
exércitos hititas se agrupando além das colinas. A cidade não estava preparada
naquela noite para um ataque, desta forma viram a tempestade como uma espécie
de milagre que o deus Marduk havia enviado para proteger o seu povo. Mas os
ventos do norte traziam mais do que areia e notícias sobre ataques inimigos.
Havia algo de diabólico naquele vento. Uma presença maligna de proporções
avassaladoras. Aquele não era o dia da salvação da cidade, e sim o de sua
destruição.
Do topo da torre, não
era possível enxergar a cidade abaixo, devido à nuvem de terra e areia que nem
mesmo os gigantescos muros da cidade eram capazes de reter. Não se podia ver
nada. Mas eu podia sentir que algo ou alguém se aproximava.
Uma nuvem de areia
cobriu a minha vista por um instante e quando o vento amainou pude ver uma
criatura de forma humana que se erguia sobre o ponto mais alto da torre. Estava
empoleirado em um dos degraus logo acima de mim, como um gárgula gótico, com um
par de asas que mais parecia as de um morcego. Os olhos penetrantes da criatura
eram completamente negros e os seus dentes pontiagudos e estreitos. De resto
parecia humano, a exceção ao seu forte cheiro de enxofre e sua presença incrivelmente
má. Então uma rajada de vento rasgou o céu e a luz da lua iluminou a face da
criatura. Havia algo de familiar. Sim, eu o conhecia. Eu me lembrava dele da
época em que não era um renegado. O seu nome era Metatron e era um Querubim,
assim como eu.
Metatron era um bom
lutador. Nós lutamos durante quase toda a noite. Um pouco antes do amanhecer,
já fadigados pelos ferimentos, consegui aplicar um golpe forte no demônio que
foi arremessado contra o eixo principal da torre. O eixo começou a rachar. Metatron
não agüentou a queda e morreu. A torre começava a desmoronar. Escapei voando e
em pouco tempo a torre toda havia sido destruída, levando consigo a cidade mais
bela de toda antigüidade. A tempestade de areia varreu as ruínas. A cidade que
lá havia morreu. Seu povo se dispersou pelo mundo. Aquela batalha me custou
muitas cicatrizes, que tenho até hoje, e foi a maior prova de que eu não era
invulnerável e tampouco estava seguro. Com a morte daquele demônio, os outros
saberiam onde eu estava. Tive que partir para longe. Começava a perceber que
não devia ter me separado dos outros Renegados, mas ainda não estava certo
disso. Quando percebi o erro, entretanto, já era tarde demais. Já havia me
humanizado tanto, que a minha aura se confundia com a dos humanos. "Exibir"
a aura divina tornou-se uma ação voluntária, e eu não queria correr riscos.
Isso foi bom por um lado, pois me dava uma defesa natural contra aqueles que
queriam me caçar.
Dali eu parti para a
ilha de Creta, de onde chegavam notícias de uma próspera civilização além do
mar Egeu. Lá, me estabeleci em Knossos por um bom tempo, e tive a oportunidade
de presenciar a chegada da Idade do Bronze em seu centro mais importante.
Cheguei até a arranjar um emprego de escriba das cartas secretas do Rei Minos, legendário
governante do local. Creta foi o lugar que eu pude chamar de casa por mais
tempo. Aos poucos, a civilização cretense entrou em decadência e uma série de
guerras tentava impor a hegemonia dos estados do continente. Decidido a
permanecer em Creta, tornei-me um dos maiores cientistas bélicos, ao lado dos
outros generais. Um acontecimento marcante me fez deixar Creta: a morte de um
de meus companheiros. Eu havia sentido que um dos Renegados tinha sido morto e
eu podia ser o próximo. Desde então nunca mais permaneci durante tanto tempo no
mesmo lugar. A morte do primeiro de meus companheiros me deixou abalado, e
parti a fim de encontrar os outros. Inútil. Nunca mais os vi.
Depois de Knossos,
alcancei o Egito pelo rio e durante a minha estadia fui visitado por dois
anjos, ambos buscando a minha morte. Derrotei-os. Parti dali para Roma. Lá,
senti a morte de mais dois Renegados e travei combate com mais duas criaturas
infernais e quatro anjos. Nesse último combate quase fui morto e escapei da
cidade antes que outros viessem atrás de mim.
Deixei Roma em
direção ao Oriente, a China. Conheci hábitos novos e consegui me manter oculto
por algum tempo. Depois da China estive em uma infinidade de outro lugares e
perambulei de civilização em civilização até o fim da Antigüidade. Com a queda
do Império Romano e o início da Idade das Trevas, as grandes cidades foram
sucumbidas no Ocidente, o que me fez viver um bom tempo no campo. Travei
inúmeras batalhas na Idade Média e outros Renegados foram mortos. Os dezoito estavam
sumindo pouco a pouco. A Idade Média foi a época mais negra, a época em que
mais fui caçado e mais Renegados morreram. Com tudo isso, entretanto, eu me
tornava mais forte.
O fim da Idade Média
trouxe de volta os grandes homens, os pensadores, o estilo clássico, as luzes.
A população cresceu e as cidades prosperaram. Os centros urbanos tornaram-se
ótimos para me ocultar. Comecei a me integrar na sociedade dos humanos, sem me
prender a lugares específicos. "Deixai que a história siga seu curso".
Os tempos modernos
trouxeram de volta as trevas. As caçadas se acirraram e os outros Renegados
foram morrendo um por um. Chegamos ao século XX com uma sociedade que se
aproxima do fim. Guerras, doenças, fome, um quadro que se encaminha para o
juízo final. Há uma hipótese que diz que todas as penas serão revistas com o
Apocalipse e espero estar vivo até lá para que algo aconteça. Hoje, tenho quase
certeza de que fui o único que sobrou dos dezoito Renegados. À medida que a
busca pela minha cabeça se torna mais acirrada, mais difícil torna-se a minha
captura. Hoje, além de estar mais forte, me humanizei de forma a me confundir
perfeitamente com os mortais. Permaneço oculto até hoje, esperando o julgamento
final.
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