8
Rio de Janeiro, cais do porto, por volta de duas horas da madrugada.
A
noite estrelada e sem Lua proporcionava uma escuridão ainda mais plena.
Sem maiores reflexos nas águas, o negrume avançava de tal maneira que o
horizonte parecia inexistir, quase se confundindo com o céu, delimitado
apenas por uma extensa faixa de minúsculos pontos brilhantes, dezenas
de estrelas situadas à altura dos olhos. Para aqueles acostumados às
grandes metrópoles, ou que viviam longe do mar, aquela visão
simplesmente impressionava.
A
embarcação se encontrava ancorada em um ponto mais afastado e de menor
movimento do porto. Quatro homens e uma mulher aguardavam já a uns vinte
minutos, quando finalmente os faróis de uma espaçosa van iluminaram a
noite.
–
Já não era sem tempo – bufou Carniça, contrariado, acenando para que
dois dos homens tomassem posição mais à frente, rodeando o veículo.
– Só três guardas? Não é pouco para uma operação como esta? – questionou o homem nervoso, mal desceu do carro.
– É o suficiente – foi a resposta taxativa. – O seu Casimiro não gosta de chamar atenção. Quanto mais gente, mais aparece.
– Está tudo aí? – perguntou ansioso, desviando o olhar para uma série de engradados.
–
Está tudo aqui. Vamos carregar e cair fora – confirmou Carniça,
acenando para os homens iniciarem o carregamento. – Enquanto isso, quero
lhe apresentar nosso… contato de importação, por assim dizer – disse,
acenado para a jovem ao lado, com um sorriso sarcástico – apenas para que tenha certeza de que as demais encomendas estarão garantidas, como prometemos.
Carniça
fez menção de se virar e chegou a abrir a boca. No entanto, não disse
mais qualquer palavra. De súbito, inúmeros holofotes poderosos se
acenderam, ao mesmo tempo em que dezenas de máquinas fotográficas de
precisão disparavam.
Através de um megafone, uma voz estridente se fez ouvir.
– Polícia Federal! Todos parados! Afastem-se do barco e larguem as armas!
–
Você não disse que ele havia sido investigado? – perguntou a mulher,
por entre os dentes, se refazendo de imediato da surpresa. Naqueles
segundos de tensão, ninguém notara sua reação de elevar a mão e cobrir
parcialmente o rosto, assim que as luzes se acenderam.
– E foi! – gritou Carniça em resposta, agarrando o homem pelo colarinho.
– N-não… eu n-não tenho nada com isso! – balbuciou. – Só quero a encomenda e…
–
Cala a boca! – gritou-lhe o contrabandista de armas, empurrando-o
contra a própria van. – Samuel, manda chumbo nesses caras, vamos cair
fora daqui!
Os
dois indivíduos junto a van nem precisaram aguardar a ordem. Um olhar
de Samuel foi o suficiente para que mostrassem as armas, um par de
submetralhadoras Ingram MAC10, de origem norte-americana, com capacidade
de mil e cem disparos por minutos. Em segundo, o Inferno se fez vivo, e
qualquer um compreendeu o porquê de tão poucas pessoas para guardar
aquela operação. Armas como aquelas compensavam em muito o número de
homens.
–
Para o barco! – gritou Carniça, enquanto ele mesmo disparava em leque,
abrangendo várias direções de uma vez só. – Vamos cair fora daqui!
Perdido
em meio ao tiroteio, o homem da van tentou chegar à embarcação, sendo
detido por Carniça no último instante, que o empurrou para fora.
– Você, não! Você fica e explica pros federais o que estava fazendo. Depois acertamos as contas!
– M-mas eu não sei… n-não me deixem… e-eu… – tentou articular, caindo com um baque seco contra o veículo.
Os
dois outros homens mantinham fogo cerrado, cobrindo a retaguarda e
fuga, enquanto o barco se colocava em movimento e se afastava a alta
velocidade.
– Pega a van, Zé, vamos dar o fora daqui – disse um deles. No entanto, um disparo certeiro o colocou fora de combate.
Vendo
o companheiro tombar, o outro passou a disparar e a gritar como louco,
cometendo o descuido de se expor. Em segundos, dezenas de disparos
fizeram-lhe o corpo chocalhar e estremecer, até tombar, silenciando-lhe a
arma.
Como
se o súbito interromper dos disparos fosse um sinal, dezenas de homens
deixaram suas posições e avançaram, armas em punho, prontas a disparar.
Em segundos, cercaram a van e os homens caídos.
–
Você aí, pro chão! Mãos na cabeça! – gritou um agente, todo de preto e
com colete à prova de balas para o homem encolhido junto à van.
Sem
esboçar reação, a pele esbranquiçada como se o sangue lhe tivesse
fugido, concordou com a cabeça, deitando-se e levando as mãos à nuca,
apenas balbuciando frases incompreensíveis.
Poucos
minutos depois, a situação se encontrava sob controle, e um homem
trajando terno preto se aproximou. Embora a transferência da mercadoria
havia sido frustrada e as armas apreendidas, o agente Francisco, da
Logística, se achava contrariado.
–
Bom, não podíamos colocar barcos-patrulha na área. Se tivéssemos feito,
eles teriam percebido – justificou-se o encarregado da Polícia Federal,
um tanto contrariado por ter de se submeter a um desconhecido. Fosse
quem fosse o homem de terno preto, tinha papéis que lhe garantiam
autoridade absoluta.
–
Sei disso, você não tem culpa – respondeu, dando vazão à frustração. –
Apenas não me conformo como escaparam debaixo de nossos narizes.
– Aquelas submetralhadoras eram armas poderosas. Poucos homens conseguem deter quase um contingente, ao menos por um tempo.
–
Tempo suficiente para os outros escaparem – respondeu Francisco,
observando o mar negro que se abria à frente. Àquela altura, a
embarcação já havia sumido de vista, sem a menor idéia de que rota
tomara.
– Ao menos temos um prisioneiro e aprendemos as armas – comentou por fim, o agente federal.
Francisco
não respondeu. De fato, o prisioneiro era uma figura central para
esclarecer o ocorrido e, sendo quem era, os possíveis desdobramentos
daquilo tudo. Apesar disso, sentia-se inquieto. Duzentos AK-47 não eram
coisa pequena. Mesmo assim, algo lhe dizia ser aquilo apenas a ponta do
iceberg.
9
Dez da manhã daquele dia. Sede da Logística, sala de reuniões.
A
mesa grande era ocupada por apenas três homens, estando o coronel
Campos à cabeceira. Embora rígida, as faces deixavam transparecer-lhe a
insatisfação.
– E isso é tudo o que temos.
Campos observou o homem à frente por uns instantes.
–Francisco
– disse em tom quase professoral – você foi escolhido especialmente
para chefiar esta investigação, pois sua folha de serviços é impecável,
tanto em seus tempos de Forças Armadas. Bem como o período em que passou
na Polícia Federal. E com todos esses méritos, você só tem isso para me
dizer?
O
agente passou a mão pelos cabelos que começavam a rarear
prematuramente. O rosto se achava marcado pelo cansaço, não tendo
descansado desde a apreensão na madrugada.
–
Gostaria de poder dizer muito mais, coronel, mas existem incógnitas
sobrando nesta história – comentou, fazendo uma pausa e exibindo uma
foto de uma série que se encontravam espalhadas pela mesa – José
Marcindo Gomes – continuou – preso junto ao carregamento de armas.
Citado em duas ocasiões por informantes diferentes, que o ligaram ao
contrabando e nos levaram às informações para montar a operação de
apreensão. De início, acreditávamos que tais armas seriam destinadas ao
narcotráfico, e foi quando este nome surgiu, sem qualquer histórico
ligado ao crime organizado, saltando aos olhos apenas sua participação
na Igreja da Luz e da Revelação, possivelmente uma de muitas seitas que
surgiram nos últimos anos.
O
coronel Campos apertou os lábios. Aquilo de fato saltava aos olhos,
exatamente como seu agente falara. Se havia alguma coisa de incomum
naquele caso, aquela era a informação.
–
Gomes foi detido e agora se encontra na sede da Polícia Federal, junto a
seus advogados. Há suspeita de que ele possua relações ao alto escalão
dessa igreja, mas isso ainda não está claro, ou o envolvimento de outros
membros com o contrabando das armas.
–
Julio – disse o coronel, voltando-se para o segundo agente presente –
levante tudo sobre essa tal Igreja da Luz e da Revelação. Quero saber
quem são, a quem respondem e principalmente, o que pretendem. Esta
compra de armas pode ter sido uma ação isolada de um maluco, ou não –
finalizou, retornando em seguida para o outro homem. – O que mais temos,
Francisco?
–
A estratégia de usarmos potentes holofotes e fotografarmos o flagrante
foi um sucesso – respondeu, selecionando outras fotos. – O principal
homem é este aqui – disse apontando – Jorival Tavares, conhecido como
Carniça e uma espécie de gerente de Casimiro.
– O traficante de armas – comentou o coronel Campos, mais para si próprio.
–
Exatamente – prosseguiu Francisco. – Jorge Casimiro de Abreu e Sá,
conhecido traficante de armas, só trabalha com grandes negociações,
muito embora até hoje nada se conseguiu provar contra ele. É tido como
rico comerciante, importador e exportador, e tem por norma nunca se
expor, o que parece ter funcionado estes anos todos.
– Há uns quatro anos houve um incidente, onde seu nome foi envolvido, não?
–
Sim, coronel. Ao que tudo indica, ele se envolveu em um tiroteio, em
circunstâncias pouco claras, com a polícia, mais precisamente com o
tenente Rafael Eduardo de Barros, que comanda uma unidade experimental
da Polícia Militar, que trabalha à paisana e procede a investigações. Na
época, também se viu envolvido o principal assassino de Casimiro,
Carllos Covallo, apelidado de Cavalo, brutal e sem escrúpulos.
– E esta jovem, quem é? – perguntou Campos, puxando um dos muitos flagrantes.
–
Foi quem mais trabalho nos deu para identificar. É nítida a seqüência
onde ela leva a mão ao rosto, encobrindo-o parcialmente, quando as luzes
se acenderam, como se intuísse que fotos seriam batidas.
Campos assentiu com a cabeça, pensativo.
–
Seu nome é Tatiana Michalovna – continuou Francisco. – Entrou no país,
precedendo da Rússia, há pouco mais de um mês. Declarou-se em visita a
negócios, funcionária das empresas Ukranivitch de maquinários
industriais. Sua ficha na empresa bate com os dados fornecidos.
– E quem é ela de fato?
O agente Francisco não pode deixar de esboçar um sorriso pela perspicácia do coronel Campos.
–
Depois de muito investigar e revirarmos quase todos os arquivos
espalhados pelo mundo afora, alguns altamente codificados e secretos,
descobrimos que seu verdadeiro nome é Pola Onatopp, nascida em São
Petersburgo, Rússia, localizada às margens do rio Neva, na entrada do Golfo da Finlândia, Mar Báltico, em
1982, ou seja, possui apenas 26 anos, um tanto jovem para estar em uma
posição de destaque em uma operação como aquela. Seu pai, Andrey
Onatopp, foi agente da KGB, durante os anos de ferro, e estas são todas
as informações disponíveis.
– Nada mais? – questionou o coronel, um tanto surpreendido.
– Nada, senhor. Até parece que esta mulher não tem passado.
–
Talvez não queiram que saibamos de seu passado – ponderou o coronel. –
São Petersburgo é conhecida hoje como a Capital do Crime, pela imprensa
local. É uma cidade violenta, sede do chamado Sindicato do Crime ou
Máfia Russa.
– Então ela deve ser o elo de ligação de Casimiro com os traficantes de armas russos – constatou o agente Júlio.
–
Pode ser, mas como Francisco disse, ela é um tanto jovem demais para
estar à frente de uma operação internacional deste porte – respondeu o
coronel, inquieto e desconfiado.
– Alguma outra possibilidade, coronel?
–
Ou o Júlio está certo, apesar da idade… – disse o coronel Campos,
batendo com o dedo, interrogativo, em uma foto de Andrey Onatopp,
anexada ao relatório – …ou é uma das agentes de Nikolai Patrushev, chefe
do FSB, Serviço Federal de Segurança, antiga KGB e atual Serviço
Secreto Russo.
Continua...
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