sábado, 26 de maio de 2012

Alegoria da Maldade

devil-copia

  1350 a.C., dia das trevas.

            Faltava pouco para a batalha começar: os demônios marchavam incessantemente em rumo a colina de Zahur. Meu povo humilde e desprovido de armas, apenas aguardava a chegada daqueles que lhes tirariam a vida e, próximo do nosso altar aos deuses Sol e Lua, em cima de uma pedra no alto da colina, eu os observava: de um lado, meu povo; velhos, crianças, jovens e casais. Do outro, marchando com firmeza, a tropa dos demônios em seus robustos e fantasmagóricos cavalos. O farfalhar metálico das armaduras e armas e o tropeio dos cavalos eram irritantes, mas o brilho das espadas refletidas sobre a irmã Lua, riscavam a noite como grandes pirilampos, fazendo-me lembrar dos tempos de criança, quando corríamos à noite nas colinas de Zarcar em busca destes insetos que brilham. Sim, o tempo passou como um relâmpago. Naquele fatídico dia eu era um homem de três décadas, casado com uma mulher muito especial e pai de sete maravilhosos filhos. A morte caminhava lentamente, e nada poderia impedi-la e muito menos cessar o inevitável, a não ser algo estranho e inesperado que surgia de minhas entranhas; amargo, odioso, perverso e quente. Eu sentia meu sangue ferver nas veias como uma grande torrente, e com os punhos fortemente fechados, aguardei na entrada da vila a chegada da morte, enquanto que meus contemporâneos apenas observavam minha estranha fisionomia, semelhante daqueles que caminhavam para nos destruir… Alguns jovens pareciam ter sido contaminados com a minha febre, e ficaram atrás de mim, de punhos fechados e dentes cerrados. O som da morte ficava cada vez mais próximo. Podíamos sentir o chão vibrando no mesmo ritmo das batidas dos nossos corações. Eu permaneci intacto, diferente das minhas veias que freneticamente tentavam saltar do corpo. O chão estremecia cada vez mais. Quantos demônios marchavam em nossa direção? Dois mil? Três mil contra apenas duzentos humildes camponeses desarmados? O que fizemos para os deuses para termos tamanho castigo? O que os meus punhos poderiam fazer contra centenas de demônios poderosos e armados?… O som do inferno estava tão próximo, que não podia mais ouvir as lamentações dos velhos nem o choro das crianças e, logo, avistei os primeiros seres da morte vindo em nossa direção; truculentos, altos e selvagens. Por um momento que durou uma eternidade, o tempo parou. Eles pararam de marchar. O chão não mais estremecia, mas ainda podia ouvir ao longe o soluço das nossas crianças, e as batidas do meu coração se intensificaram de tal maneira, que poderia senti-las em minha face.  Um deles, carregando uma bandeira negra com um símbolo de um deus profano, caminhou em nossa direção, parou e vociferou versos infernais. Quando lhe faltou palavras, numa cena dantesca, com os olhos vermelhos, arregalados e lacrimejantes, olhou para nós e iniciou um tétrico gargalhar, como se estivesse possuído por uma estranha entidade, pois o som que emitiu foi tão agudo, que estremeceu minh’alma. Ele ergueu ainda mais o braço, para que, sem exceções, todos visualizassem a tétrica estampa da sua bandeira, quando que de trás dele, centenas de amaldiçoadas flechas com pontas de fogo foram arremessadas, atingindo grande parte da população, queimando nossas casas e nossas vidas. Eles  gritavam e gargalhavam, algo que só os demônios deveriam fazer nas cenas da morte. Em questão de pouquíssimo tempo, ninguém mais estava atrás de mim; todos mortos, decapitados e desfigurados. Saltei por cima do primeiro demônio, e com uma força hercúlea, o estrangulei, chamando atenção de outros dois que vieram rapidamente em minha direção. Peguei a espada do que matei e quase cego de ódio, desferi golpes ágeis e certeiros, deixando mais dois corpos ensangüentados no chão. Eles não eram demônios como eu imaginara, pois possuíam nossas mesmas feições, sangravam e tombavam como nós…. Formei um círculo de corpos em volta de mim, como uma pequena muralha de carne e ossos. Minhas roupas estavam tingidas de sangue. Meu paladar sentia o gosto amargo do respingo do sangue deles. Meus pés, mergulhados em poças de sangue, tornaram-se escorregadios.  Naquela noite, perdi a conta de quantos mandei para suas moradias, provavelmente nos confins do inferno, mas, chegou um momento em que meus olhos não agüentaram a ardência do fétido e maldito sangue dos adversários. O peso da espada tornou-se insuportável; não conseguia mais erguê-la. Minhas pernas estremeciam e fraquejavam cada vez mais, mas, foi somente quando vi minha amada esposa e filhos mortos, que perdi a guerra. Pois nada mais fazia sentido para mim… Fui espancado, acorrentado e humilhado, enquanto ouvia a zombaria dos inúmeros covardes soldados.
Fui o único sobrevivente do meu povo e, após saquearem nossos poucos bens, fui levado pelos demônios e caminhei por vários dias, sem comer ou beber. Perdia as forças constantemente. Desmaiava e acordava, devido a intensa dor de ser esfolado, quando o  cavalo me arrastava no arenoso e trepido terreno. Eles se divertiam e gargalhavam com a minha lastimosa e degradante situação.

(…)

Após dias de tortura, chegamos ao escuro vilarejo dos maltrapilhos demônios; um lugar terrível, onde a carniça era visivelmente espalhada a esmo. Todos os malditos vieram receber os guerreiros com euforia. Fui levado como um grande troféu até o centro do local; um campo aberto onde poderia acomodar todos eles. Enquanto era preparado para ser enforcado, algumas crianças cuspiam e atiravam pedras em mim e, após todos os espasmos de euforia, inevitavelmente, fui enforcado… Mas adianto-lhes que para o céu não fui convidado e do inferno facilmente escapei.

(…)

É com grande pesar que vos escrevo e relato que foi naqueles dias que aprendi o que era a maldade. Meu coração petrificou-se por completo. Meus olhos perderam o brilho. Minha voz ganhou uma tonalidade intensa de rouquidão, enquanto que minha feição tornou-se sombria e, o amor? É apenas uma palavra encontrada nos contos de fadas… Hoje sou um espírito errante, caminho incessantemente em busca de algo… Sim, algo que me faça entender o porquê dos deuses terem criado esse terrível sentimento intitulado Perversidade.
Essa é minha história, este sou eu; perverso, odioso, poderoso e eterno. Posso ser chamado por vários nomes: Diabolus, Belzebú, Baphomet, Lúcifer, Barrabás, Satanás ou mesmo Anjo Caído, tanto faz…  Caminho através dos séculos em busca de vingança, mas, se um dia cruzar contigo, reze para os seus deuses que eu enxergue apenas a bondade em seus olhos, pois o fio da minha espada é cruel, vingativo e certeiro… 

FIM

=================================SOBRE O AUTOR DEBUTANTE

ADEMIR PASCALE

     Lingüista, crítico  de  cinema,   ati-vista cultura, escritor, professor de informática (LINUX), idealizador do projeto de inclusão social VÁ AO CINEMA e do zine TerrorZineMinicontos de Terror e editor do portal Cranik (www.cranik.com), é também autor do áudio-livro Cinema – Despertando seu olhar crítico (Editora Alyá). Já publicou seus contos em diversas antologias, organizou a coletânea Nos labirintos da Escuridão, está com o romance O Desejo de Lilith - Revelações em um diário no prelo e organiza a coletânea de novelas para a obra Invasão – Fic Science Edition da Giz Editorial.





Nenhum comentário:

Postar um comentário