1350
a.C., dia das trevas.
Faltava pouco para a batalha começar: os demônios marchavam incessantemente em
rumo a colina de Zahur. Meu povo humilde e desprovido de armas, apenas
aguardava a chegada daqueles que lhes tirariam a vida e, próximo do nosso altar
aos deuses Sol e Lua, em cima de uma pedra no alto da colina, eu os observava:
de um lado, meu povo; velhos, crianças, jovens e casais. Do outro, marchando
com firmeza, a tropa dos demônios em seus robustos e fantasmagóricos cavalos. O
farfalhar metálico das armaduras e armas e o tropeio dos cavalos eram
irritantes, mas o brilho das espadas refletidas sobre a irmã Lua, riscavam a
noite como grandes pirilampos, fazendo-me lembrar dos tempos de criança, quando
corríamos à noite nas colinas de Zarcar em busca destes insetos que brilham.
Sim, o tempo passou como um relâmpago. Naquele fatídico dia eu era um homem de
três décadas, casado com uma mulher muito especial e pai de sete maravilhosos
filhos. A morte caminhava lentamente, e nada poderia impedi-la e muito menos
cessar o inevitável, a não ser algo estranho e inesperado que surgia de minhas
entranhas; amargo, odioso, perverso e quente. Eu sentia meu sangue ferver nas
veias como uma grande torrente, e com os punhos fortemente fechados, aguardei
na entrada da vila a chegada da morte, enquanto que meus contemporâneos apenas
observavam minha estranha fisionomia, semelhante daqueles que caminhavam para
nos destruir… Alguns jovens pareciam ter sido contaminados com a minha febre, e
ficaram atrás de mim, de punhos fechados e dentes cerrados. O som da morte
ficava cada vez mais próximo. Podíamos sentir o chão vibrando no mesmo ritmo
das batidas dos nossos corações. Eu permaneci intacto, diferente das minhas
veias que freneticamente tentavam saltar do corpo. O chão estremecia cada vez
mais. Quantos demônios marchavam em nossa direção? Dois mil? Três mil contra
apenas duzentos humildes camponeses desarmados? O que fizemos para os deuses
para termos tamanho castigo? O que os meus punhos poderiam fazer contra
centenas de demônios poderosos e armados?… O som do inferno estava tão próximo,
que não podia mais ouvir as lamentações dos velhos nem o choro das crianças e,
logo, avistei os primeiros seres da morte vindo em nossa direção; truculentos,
altos e selvagens. Por um momento que durou uma eternidade, o tempo parou. Eles
pararam de marchar. O chão não mais estremecia, mas ainda podia ouvir ao longe
o soluço das nossas crianças, e as batidas do meu coração se intensificaram de
tal maneira, que poderia senti-las em minha face. Um deles, carregando
uma bandeira negra com um símbolo de um deus profano, caminhou em nossa
direção, parou e vociferou versos infernais. Quando lhe faltou palavras, numa
cena dantesca, com os olhos vermelhos, arregalados e lacrimejantes, olhou para
nós e iniciou um tétrico gargalhar, como se estivesse possuído por uma estranha
entidade, pois o som que emitiu foi tão agudo, que estremeceu minh’alma. Ele
ergueu ainda mais o braço, para que, sem exceções, todos visualizassem a
tétrica estampa da sua bandeira, quando que de trás dele, centenas de
amaldiçoadas flechas com pontas de fogo foram arremessadas, atingindo grande
parte da população, queimando nossas casas e nossas vidas. Eles gritavam
e gargalhavam, algo que só os demônios deveriam fazer nas cenas da morte. Em
questão de pouquíssimo tempo, ninguém mais estava atrás de mim; todos mortos,
decapitados e desfigurados. Saltei por cima do primeiro demônio, e com uma
força hercúlea, o estrangulei, chamando atenção de outros dois que vieram
rapidamente em minha direção. Peguei a espada do que matei e quase cego de
ódio, desferi golpes ágeis e certeiros, deixando mais dois corpos
ensangüentados no chão. Eles não eram demônios como eu imaginara, pois possuíam
nossas mesmas feições, sangravam e tombavam como nós…. Formei um círculo de
corpos em volta de mim, como uma pequena muralha de carne e ossos. Minhas
roupas estavam tingidas de sangue. Meu paladar sentia o gosto amargo do
respingo do sangue deles. Meus pés, mergulhados em poças de sangue, tornaram-se
escorregadios. Naquela noite, perdi a conta de quantos mandei para suas
moradias, provavelmente nos confins do inferno, mas, chegou um momento em que
meus olhos não agüentaram a ardência do fétido e maldito sangue dos
adversários. O peso da espada tornou-se insuportável; não conseguia mais
erguê-la. Minhas pernas estremeciam e fraquejavam cada vez mais, mas, foi
somente quando vi minha amada esposa e filhos mortos, que perdi a guerra. Pois
nada mais fazia sentido para mim… Fui espancado, acorrentado e humilhado,
enquanto ouvia a zombaria dos inúmeros covardes soldados.
Fui o
único sobrevivente do meu povo e, após saquearem nossos poucos bens, fui levado
pelos demônios e caminhei por vários dias, sem comer ou beber. Perdia as forças
constantemente. Desmaiava e acordava, devido a intensa dor de ser esfolado,
quando o cavalo me arrastava no arenoso e trepido terreno. Eles se
divertiam e gargalhavam com a minha lastimosa e degradante situação.
(…)
Após dias
de tortura, chegamos ao escuro vilarejo dos maltrapilhos demônios; um lugar
terrível, onde a carniça era visivelmente espalhada a esmo. Todos os malditos
vieram receber os guerreiros com euforia. Fui levado como um grande troféu até
o centro do local; um campo aberto onde poderia acomodar todos eles. Enquanto
era preparado para ser enforcado, algumas crianças cuspiam e atiravam pedras em
mim e, após todos os espasmos de euforia, inevitavelmente, fui enforcado… Mas
adianto-lhes que para o céu não fui convidado e do inferno facilmente escapei.
(…)
É com
grande pesar que vos escrevo e relato que foi naqueles dias que aprendi o que
era a maldade. Meu coração petrificou-se por completo. Meus olhos perderam o
brilho. Minha voz ganhou uma tonalidade intensa de rouquidão, enquanto que
minha feição tornou-se sombria e, o amor? É apenas uma palavra encontrada nos
contos de fadas… Hoje sou um espírito errante, caminho incessantemente em busca
de algo… Sim, algo que me faça entender o porquê dos deuses terem criado esse
terrível sentimento intitulado Perversidade.
Essa é
minha história, este sou eu; perverso, odioso, poderoso e eterno. Posso ser
chamado por vários nomes: Diabolus, Belzebú, Baphomet, Lúcifer, Barrabás,
Satanás ou mesmo Anjo Caído, tanto faz… Caminho através dos séculos em
busca de vingança, mas, se um dia cruzar contigo, reze para os seus deuses que
eu enxergue apenas a bondade em seus olhos, pois o fio da minha espada é cruel,
vingativo e certeiro…
FIM
=================================SOBRE O AUTOR DEBUTANTE
ADEMIR PASCALE
Lingüista, crítico de cinema,
ati-vista cultura, escritor, professor de informática (LINUX),
idealizador do projeto de inclusão social VÁ AO CINEMA e do zine
TerrorZine – Minicontos de Terror e editor do portal Cranik
(www.cranik.com), é também autor do áudio-livro Cinema – Despertando seu olhar
crítico (Editora Alyá). Já publicou seus contos em diversas antologias,
organizou a coletânea Nos labirintos da Escuridão, está com o romance O
Desejo de Lilith - Revelações em um diário no prelo e organiza a
coletânea de novelas para a obra Invasão – Fic Science Edition da Giz
Editorial.
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