Sete minutos se passaram… Pode parecer pouco tempo, mas para
alguém que galgou dez andares, totalmente decidido a interromper o curso
da própria vida, é tempo demais.
Assim que alcançou a beira do terraço do prédio, seu Alexandre –
como é conhecido no bairro onde mora – foi tomado por uma covardia que
não esperava. Estranhou o sentimento já que, meia hora antes, estava tão
determinado. Naquele momento, já não tinha certeza se realmente era
aquilo que pretendia fazer.
O nervosismo, juntamente com o sol de verão da cidade de São
Paulo, fazia com que transpirasse como um louco. Nesta época do ano, 35
graus não é temperatura incomum para os mais de dez milhões de
paulistanos. Com isso, as roupas do homem já se encontravam coladas no
corpo. Seu braço enfaixado por conta de um tiro que levara há alguns
dias, formigava, dando-lhe tremendo desconforto. Os olhos tomados pelas
lágrimas, embaçam-lhe a visão, no entanto, ele perdia tempo olhando as
pessoas lá embaixo, sem se esquecer do motivo de estar ali, preste a dar
um passo e acabar com aquele sofrimento.
Mesmo da altura em que se encontrava, os sons da cidade
chegavam-lhe com clareza: buzinas, motores, o sino da igreja, gritaria
da feira livre, a gigantesca estaca afundando o solo de um terreno onde
um edifício era erguido – a menos de um quarteirão… Mas nada parecia
capaz de tirá-lo daquele estado que se assemelhava com um transe.
Como nos desenhos antigos da Disney, o bem e o mal pareciam
disputá-lo, cada qual sobre um lado do ombro, numa luta verbal pela
influência de sua próxima ação. Os fatos ocorridos nos últimos dias
talvez tenham-no desequilibrado e traumatizado de certa forma. Então,
num acesso de desespero, o suicídio lhe pareceu atrativo.
Seu Alexandre ensaiou um passo para a frente. Reuniu coragem.
Quando pensou em sua mulher hospitalizada em estado crítico, retrocedeu.
Na sequência, estremeceu e um calafrio cruzou sua espinha ao evocar em
sua mente a imagem demoníaca da criatura, que, há três dias atrás,
surgiu das sombras, mostrando-se para ele e sua esposa num beco.
Alexandre nunca fora um homem adepto da religião, igrejas, mas sempre
acreditou em Deus. Por toda vida ouviu falar no juízo final, na guerra
entre anjos e demônios, no purgatório, no apocalípse… Contudo, nunca
imaginou que um dia, seus olhos veriam uma criatura do inferno. Mas
aconteceu. E este ser, este demônio, talvez por zombaria, fazia uso da
imagem de sua filha morta há mais de dois anos. E qual não foi o choque
destes pais já de cabelos brancos, ao depararem com aquela visão.
Três dias antes: à noite, não muito tarde – por volta das
20h30min – seu Alexandre voltava com sua esposa Márcia, da casa do rapaz
que – estava mais do que certo – tornar-se-ia genro do casal. Todavia,
os planos de unir as famílias, foram interrompidos pela misteriosa morte
de Marcela. Passaram-se dois anos e André ainda exibia em seu dedo, a
aliança de noivado, fato que preocupava a todos. André se recusava a
seguir com a vida. Afirmava convicto que seu amor por Marcela era um
sentimento maior do que qualquer coisa deste mundo e pensando assim, o
rapaz de apenas vinte e cinco anos, não se relacionava amorosamente e
não tinha uma vida saudável. Consultas com psicólogos tornaram-se uma
constante. André parecia não se cansar de repetir que daria a vida para
rever seu amor, nem que fosse por apenas mais uma vez.
Atencioso, naquela noite, havia oferecido carona para os pais
de Marcela, mas seu Alexandre recusara. Dissera que preferia ir
caminhando, afinal, estava muito quente e sua casa ficava a apenas
alguns quarteirões de distância. A insistência de André nada adiantou.
O ar quente tomava a cidade de Santos – litoral de São Paulo.
As ruas estavam molhadas, pois há pouco havia chovido. Chuva de verão:
forte, grossa, entretanto, rápida. Não durara nem quinze minutos. Mas
foi o suficiente para transbordar bueiros e formar grandes poças pelo
caminho. Carinhosamente abraçados, Alexandre e sua senhora seguiram
pelas ruas desertas. Conheciam bem a vizinhança, visto que residiam há
muitos anos no bairro. Foi então que o improvável aconteceu. Um
automóvel com dois ocupantes, depois de uma freada brusca, derrapou e
parou próximo do casal de transeuntes. Estes se sobressaltaram. Um homem
negro e um branco, ambos de camisetas regatas, ostentando diversas
tatuagens no braço, desembarcaram do veículo e de posse de pistolas
semiautomáticas, anunciaram o assalto. Não eram moradores do bairro,
disso Alexandre tinha certeza.
Exigiram carteira, relógio, jóias; o que houvesse de valor.
− Não temos nada! − Alexandre falou sincero.
Os bandidos não acreditaram. Elevaram a voz ameaçadoramente.
Entre as gírias e os palavrões desmedidos, as ameaças de morte fizeram
com que as vítimas entrassem em estado de pânico. E foi nesta hora que
Márcia apelou para o emocional dos jovens bandidos. Péssima idéia!
− Não faça isso meu filho… temos idade para sermos seus pais.
Disse isso pousando a mão no ombro do rapaz branco, que usava
uma corrente grossa de prata no pescoço e um boné de marca na cabeça.
Este deu sua resposta agredindo-a violentamente no rosto com um soco. A
mulher de quase cinquenta anos tombou no chão molhado.
− Não tenho pai, nem mãe. − bradou o agressor.
Num impulso, seu Alexandre partiu pra cima do assaltante,
ocasião em que foi atingido no braço por um disparo efetuado pelo outro
bandido. Sob gemidos de dor, o pobre homem recostou-se na parede pichada
e descascada. Seus olhos foram dos marginais para sua esposa caída.
Esta fitou-o com o olhar alagado por lágrimas. Enquanto os agressores
apontavam suas armas, as vítimas permaneceram caladas, mudas. Pareciam
aguardar o estouro do tiro que lhes tiraria a vida. E isso estava preste
a acontecer, mas um rosnado chamou a atenção de todos. Vinha da
escuridão de um beco adjacente. Intrigada, a dupla de marginais apertou
os olhos, tentando enxergar além da obscuridade e avistar aquilo que,
para eles, deveria ser um cão. Nesse momento, dois pontos rubros furaram
a escuridão e o rosnado aumentou de intensidade, provocando medo não
apenas na dupla de criminosos, mas também, no pobre casal.
Em resposta ao agressivo bramido emanado das trevas, disparos
saíram das pistolas mirando aquela direção e, por conseguinte, um
silêncio se ergueu. O par de pontos rubros desapareceu, tal como o
rosnado. Aqueles que empunhavam armas se olharam. Abriram um sorriso
mudo. Estavam certos de que o animal alvejado, havia ido para o inferno.
Estavam enganados!
Ligeira como um flash de uma máquina fotográfica, a criatura
saltou da escuridão sobre o rapaz negro. Este não teve como se defender,
indo ao chão e acabando por ter seu rosto horrivelmente dilacerado
pelas unhas exageradamente compridas da criatura. O outro jovem,
amedrontado, largou sua arma e correu. No entanto, num pulo gracioso e
selvagem, o ser noturno, alcançou-o facilmente e numa brutalidade
impressionante, mordeu-lhe o pescoço e, faminta, sorveu-lhe o sangue.
Alexandre, que naquele instante amparava sua mulher, não pôde
acreditar no que via. Ambos fitaram aquela cena horripilante com olhos
arregalados de pavor e incredulidade. Aquele ser, aquele monstro que se
alimentava do sangue de um ser humano, obtinha a aparência de sua filha
Marcela, morta anos antes. O cérebro do casal entrou numa espécie de
curto; como se estivesse em chamas. Sob forte estado de pânico, eles se
abraçaram e se limitaram a assistir a macabra cena. A agonia fazia com
que seus rostos se contorcessem em expressões diversas.
Neste momento, a criatura de longos caninos sentiu o peso dos
olhares que a fitavam. Levantou a cabeça e encarou o casal, a poucos
metros de distância.
Seus olhos vermelhos como fogo, sua pele esbranquiçada como a
de um moribundo e o sangue espalhado em volta de seus lábios, firmavam
uma imagem bizarra e doentia. Tomada por um misto de emoções, a mulher
agredida pelo marginal, se ergueu. Um filete de lágrima correu em sua
face ferida.
− Marcela?… − balbuciou Márcia, amparada pelos braços do marido.
Demonstrando atordoamento, a criatura assassina saltou mais
uma vez. Apoiou-se num cano na parede, tomou impulso e ganhou o alto de
um pequeno prédio, desaparecendo entre a escuridão da noite. Logo
depois, Márcia passou a se sentir mal. Pousou a mão no coração: estava
sofrendo um enfarto. Percebendo o que estava havendo, seu Alexandre em
total desespero, gritou por socorro.
De volta ao presente: as lembranças da noite em que viu um
demônio apossado da aparência de sua filha falecida, alimentando-se de
sangue como um animal selvagem, serviram como um medidor de desespero
para seu Alexandre que, naquele exato momento, atingia o ápice.
Somando-se a isso, ecoou em sua mente, a voz fria do médico do hospital,
dizendo-lhe que não sustentasse esperança no caso de sua mulher.
Com lágrimas descendo-lhe pelo rosto e o coração profundamente
amargurado, o homem finalmente deu o passo que acabaria com seu
evidente tormento e, também, sua vida.
========================================SOBRE O AUTOR DEBUTANTE
EVANDRO GUERRA
Escritor e
ilustrador. Participa regularmente do zine TerrorZine: minicontos de
terror. Teve seu conto “Marcela” selecionado por Ademir Pascale para
compor a coletânea Draculea: o Livro Secreto dos Vampiros.
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