4
Seis
meses se haviam passado, desde que assumira suas novas funções, porém, o
coronel Campos nem tivera tempo para se dar conta. A Logística, agora
grafada com maiúscula, ficara sendo como o SBI era referenciado, mesmo
em memorandos oficiais. Ele chegou a sorrir, lembrando de como toda uma
linha de despistamento, evasivas e dissimulação se engendrara quase que
automaticamente, desde que a Logística entrara em operações. Melhor
assim, que continuassem pensando que o Brasil fosse somente o país do
samba e futebol.
Contudo,
o sorriso lhe desapareceu de imediato. Havia muito mais por detrás
daquele palco conhecido. Era nos bastidores, mais propriamente nos
subterrâneos, que os verdadeiros dramas se desenrolavam, ou melhor, que
se desenrolavam os dramas que não chegavam ao conhecimento da população
ou da imprensa e dos meios de comunicação.
Distraído,
se deteve aos pensamentos. A situação lembrava-lhe alguns livros ou
filmes de ficção, onde o mundo cotidiano seguia em sua vida normal, sem
se dar conta da existência de fantasmas, vampiros ou todo um séqüito de
seres sobrenaturais, que atuavam escondidos nas sombras. Contudo, embora
o pensamento o divertisse, o coronel não voltou a sorrir, desta feita.
Para dizer a verdade, preferiria mil vezes que suas atuais considerações
envolvessem fantasmas ou vampiros. Os desdobramentos certamente seriam
de menor impacto.
O
súbito toque do telefone o tirou dos devaneios. O coronel atendeu e
ouviu por uns instantes, as feições se alterando, se tornando ainda mais
rígidas.
–
O mesmo nome, agora vindo através de outro informante? – questionou,
arcando as sobrancelhas, de certa forma, surpreso. Contava com que a
primeira informação tivesse sido errônea, mas agora, parecia ter os
temores confirmados. – Encontre-o e o mantenha sob vigilância, não o
perca em hipótese nenhuma. Não acredito em coincidências.
Campos
desligou, o semblante preocupado. Sem se dar conta, questionava-se no
íntimo se algum escritor de fantasia chegaria a cogitar e elaborar uma
trama como a que se prenunciava. Em um pedaço de papel, escreveu Igreja
da Luz e da Revelação. Instantes depois, anotou um nome e o sublinhou
várias vezes.
5
Um mês antes do telefonema.
A
súbita brisa suave contrastava com a noite quente, amenizando um pouco o
calor, que imperara o dia todo. A danceteria, uma casa da moda e
bastante badalada, se achava repleta já havia horas, e ninguém
desconfiava quem eram os verdadeiros proprietários ou a qual propósito
servia.
Quase
uma centena de pessoas se aglutinava ao lado externo, em uma fila
interminável à porta, aguardando a vez de entrar, quando um luxuoso
carro importado estacionou. A jovem, trajando um elegante vestido
grafite, caído às costas de modo insinuante e generosamente aberto em
uma das laterais, deixando exposta a coxa, desceu, sequer se voltando
para os demais, ignorando a todos por completo. Quando chegou à porta, a
entrada foi-lhe liberada de imediato, e com passos firmes e decididos,
se dirigiu a um reservado, onde um homem, junto a uma mesa com algumas
garotas, a aguardava.
– Está adiantada – comentou, em tom de cumprimento. – Fez boa viagem?
– Sempre faço – foi a resposta taciturna e lacônica.
A mulher observou o homem por uns minutos, em silêncio, aguardando que as companhias fossem dispensadas.
–
Vão dançar um pouco, meninas, que tenho negócios a discutir – disse,
com as garotas se levantando de pronto e deixando-o a sós, com a recém
chegada.
– Carniça… apelido curioso, o seu, até engraçado – comentou, denotando um sotaque pouco conhecido.
–
Se você soubesse o que significa, boneca, não iria achar graça ou
curiosidade alguma – respondeu o homem, com um sorriso cortado, que mais
lembrava uma cicatriz. – Aceita uma bebida?
A jovem assentiu com a cabeça.
– Vodka pura… russa, por favor… dupla – completou após um instante, com Carniça acenando para o garçom mais próximo.
– Bem podia imaginar.
Em segundos, a garrafa envolta por uma capa de gelo foi trazida e uma generosa dose-dupla, servida.
A mulher tomou um gole, saboreando a bebida por um instante.
–
Vamos aos fatos, o que Casimiro deseja desta vez? – perguntou por fim. –
Espero que o suficiente para justificar minha vinda ao país.
–
Pode ter certeza que sim, boneca. Você sabe que o seu Casimiro não
brinca em serviço, e que só trabalha com coisa grande e gente fina,
cheia da nota.
– Quão grande? – questionou, mantendo-se impassível.
–
Grande. Só para começar, para o cliente sentir a mercadoria, são
duzentos fuzis Kalashnikov AK-47. Se aprovado, e não duvido que irão
aprovar, temos encomenda para mais dez mil.
–
Dez mil? – perguntou, pela primeira vez, deixando transparecer um
sorriso no canto da boca. – Interessante, os números começam a ficar
expressivos.
– Foi o que eu disse, boneca. O seu Casimiro não pega peixe pequeno.
–
Pressuponho que o cliente já tenha sido investigado. A última coisa de
que precisamos é alguma surpresa de sua Polícia Federal ou de qualquer
outro órgão. Algum chefão do tráfico?
– Não – respondeu sorrindo e balançando a cabeça. – Você nunca imaginaria, boneca.
– He he, é um religioso, garota, dá para acreditar? Um religioso.
6
Uma semana antes do telefonema.
Carniça
se encontrava em um sítio afastado, próximo à rodovia Rio-Santos. O
calor escaldante do dia ou o sol abrasador parecia não incomodá-lo,
embora preferisse a noite, fosse pela temperatura, fosse pelo escuro.
Contudo,
a espera não se fez demorar. Pouco mais de quinze minutos, um carro
adentrou ao local. Um homem de terno, pouco acostumado àquela
temperatura, desceu.
– Isto é o Inferno! – exasperou-se, enxugando a testa com um lenço, sentindo de imediato a camisa molhada.
– Se você está dizendo… – respondeu Carniça, com denotado desdém. – Mas é você que está de paletó.
–
Não importa – respondeu homem, apressado. – Está confirmado? –
perguntou, ansioso. Ele sabia que aquela informação nunca seria passada
por telefone ou qualquer outro meio, senão pessoalmente.
Carniça acenou com a cabeça.
–
Dia dez, daqui a uma semana, no cais do porto, a uma da manhã. Assim
que chegar, ligue neste telefone e lhe será passado o local exato de
onde estaremos – respondeu, entregando-lhe um pedaço de papel, com um
número anotado.
– Ótimo, ótimo. O dinheiro será transferido ainda hoje – respondeu nervoso, se virando em seguida para retornar ao carro.
–
Ô, chapinha! – chamou Carniça, fazendo o homem se voltar. – Não faço
idéia de que tipo de reza você pretende fazer com a mercadoria, e nem
quero saber, mas espero que você esteja presente no horário combinado.
Não vamos liberar a mercadoria para mais ninguém, tá compreendido? O seu
Casimiro não gosta de surpresas. Apronta prá cima da gente que tua
igreja vira um amontoado de pedra, tá me entendendo? Se pisá na bola… –
disse, balançando a cabeça em negativa – …tua reza não vai adiantar prá
nada!
O homem apenas confirmou com um aceno inquieto, e entrou no carro. Em alguns minutos, se encontrava longe dali.
7
Tempo atual.
– É uma suspeita, apenas uma suspeita, senhor presidente.
O homem calvo à frente enxugou a testa, continuando-se a movimentar de um lado a outro.
–
Isso é muito sério, coronel Campos. A entidade que o senhor acabou de
citar tem penetração nos principais municípios e vem se fortalecendo –
comentou, apreensivo. – Sabe-se lá quantos deputados já a freqüentam,
inclusive senadores!
Pela centésima vez, ele se sentou à mesa apenas para se levantar em seguida e reiniciar o vai e vem pela sala.
– Senhor presidente…
– Não podemos cometer o erro de nos precipitarmos e…
–
Não vamos nos precipitar! – respondeu Campos, mais enfático do que
pretendia. – Como lhe disse, são apenas suspeitas que nos apareceram,
sequer imaginaríamos um envolvimento. Contudo, agora seria leviano não
considerarmos a hipótese.
–
Apenas quero que me entenda, não desejo um escândalo político. O
segundo mandato vem aí, e se algo deste gênero ocorrer e você estiver
enganado… – disse, deixando a frase no ar, erguendo os braços em sinal
de desalento. – Às vezes tenho dúvida se fiz certo em autorizar a
criação do SBI!
Aquela era a típica afirmação que tinha tudo para irritar profundamente um homem como Campos, mas apesar de tudo, controlou-se.
–
Senhor presidente – iniciou, procurando manter a voz pausada – não
cometa o erro de julgar por antecipação. Somente me apresentei para
nossa reunião padrão, e tudo o que fiz, foi lhe relatar o que se
encontra em andamento. Caso o senhor não queira saber dos fatos – disse,
abrindo as mãos, de modo ostensivamente irônico – me diga e passarei
apenas a lhe entregar um breve resumo.
O homem calvo se voltou de pronto. As bochechas se apresentavam vermelhas, com o corado subindo-lhe à testa e à calvície.
– Não disse isso! É lógico que quero estar inteirado de tudo!
– Pois então… – respondeu o coronel, sentindo-se bem próximo ao limite da paciência.
– Apenas não quero as coisas precipitadas. Meu predecessor…
–
Seu predecessor era um engodo! – explodiu Campos, interrompendo e
erguendo-se por sua vez, fazendo o homem calvo recuar até a mesa. – É
uma afronta citá-lo nesta sala, frente à Bandeira! Vai citá-lo para quê?
Para falar daquilo que nada fez por este país ou pelo povo?
O homem calvo mal movimentou a cabeça, intimidado pela súbita reação.
–
Recuso-me a escutar sobre um analfabeto bêbado, que flertava com o
socialismo de guerrilha internacional e encobria uma verdadeira
quadrilha, que espoliada o povo pelas costas, enquanto à frente, se
desmanchava em sorrisos de débil mental e citava causas sociais que
nunca levaram a nada! Admira-me o senhor, que foi eleito exatamente
porque o povo não agüentava mais este tipo de postura!
–
Coronel Campos, n-não quis dizer isso! – tentou articular. – Apenas
enfatizo que espero que o senhor tome todas as precauções para não
causar um escândalo político que…
Que venha atrapalhar suas pretensões à reeleição e blá, blá, blá, já sei! – pensou o coronel, não dando mais ouvidos àquele discurso. Não lhe suportava pessoas fracas de caráter e pensamento.
–
Senhor presidente – disse por fim, não percebendo se interrompera ou
não – fique tranqüilo, tomarei todas as medidas necessárias para que
nada de errado ocorra. Contudo, agora, deixe-me fazer o meu trabalho!
Sem mais uma palavra, virou-lhe as costas e saiu.
Continua...
Nenhum comentário:
Postar um comentário