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– … o exército d’Ele está pronto e confiante, e a ti, pecador, a punição se abaterá sem clemência!
Francisco
interrompeu a gravação com um gesto brusco e desligou a tv. Com aquela,
já eram mais de uma dúzia de fitas, repletas daqueles discursos, todos
iguais em conteúdo, mas cada vez mais inflamados e diretos.
O
agente se levantou e embalou a gravação. O coronel Campos fora bem
claro, quanto a querer todas aquelas falas devidamente registradas.
Renan, cada vez mais explícito, prometia punição aos pecadores, e esta
era a questão que estava lhe tirando o sono. Manifestar esse tipo de
pensamento, com as palavras utilizadas, não consistia crime de
incitamento à violência. Sempre havia a desculpa de sentido figurativo,
além do fato de que pecadores é algo bastante genérico. Mas para
Francisco, e o coronel concordava com isso, era exatamente aí que
residia o perigo. De acordo com Renan, qualquer um poderia ser um
pecador, e mesmo que de maneira pouco explícita, ele tomava para si, a
questão de apontar quem eram os que cometiam os pecados, e isso poderia
se tornar muito perigoso.
Ainda que lhe fosse impossível deixar as inquietações de lado, sentou-se à mesa e começou a redigir seu relatório.
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O
escritório encontrava-se quase às escuras, um gosto adquirido a alguns
anos, em suas peregrinações. A penumbra o atraia e o acalmava, e mesmo,
fazia-lhe fluir os pensamentos. Sentado em uma poltrona, de costas para a
entrada, e observando lugar algum, em uma parede nua, o homem
simplesmente aguardava.
Assim
que o advogado de tantos anos abriu a porta, Renan acenou-lhe para que
entrasse, sem ao menos se voltar. Não era necessário, sabia quem era o
visitante. Àquela hora, ninguém mais apareceria por lá.
– Tudo concretizado? – perguntou, dirigindo o olhar, agora, às janelas e fitando a cidade do alto.
–
Tudo realizado. O pessoal do Casimiro não quis arriscar, e desta vez,
acobertou toda operação, com uma verdadeira rede de despistamento.
Renan emitiu um riso abafado.
– Eles são deveras eficientes, não?
– De fato, Ministro, de fato.
– Penso então que posso contar com nossos homens?
– Está correto. Temos os melhores do ramo, em postos estratégicos, além de centenas que são totalmente dedicados à causa.
Renan
se levantou e caminhou até as grandes divisórias de vidro. Cada vez
mais lhe fascinava, observar a cidade à noite. A metrópole era tal como
um grande animal selvagem, que serpenteava e se contorcia a todos os
lados, mas isso já não tinha importância; sabia que cabia a ele domá-la,
lhe trazer ao arreio, amarrada e domesticada a seus pés, para quando,
enfim, se curvariam aos pés d’Ele.
–
Ótimo! A Passeata pela Palavra se realizará daqui a uma semana. Apesar
do evento se concentrar na cidade do Rio de Janeiro, muitas outras
capitais já se mostraram dispostas a promover evento semelhante, e
mesmo, muitos municípios do interior de diversos estados. Como lhe
disse, não duvide da força d’Ele. Ele está junto a nós, e tudo o que vem
acontecendo, apesar de um pequeno revés, só nos prova a verdade desta
afirmação.
Renan contemplou o céu escuro.
– Reserve algumas armas e faça com que cheguem às mãos dos mais exaltados – disse após um tempo.
– Acha prudente, mesmo após o incidente da apreensão?
Finalmente, Renan se voltou para o advogado. Sua face expressava serenidade.
–
Adalberto, não há com o que se preocupar. Alguns incidentes serão
benéficos, para darmos uma amostra de quem somos. E quanto a nos ligarem
a essas questões, ou mesmo a igreja, sempre podemos alegar que é
impossível de se controlar uma multidão, ainda mais de cidadãos
indignados com todas as afrontas à moral e bons costumes, e o
afastamento dos mandamentos d’Ele. Todavia, reforce a solicitação de
policiamento e apoio.
– Não creio que eles nos darão mais do que já deram.
–
Pois é exatamente por aí! – exclamou Renan, esboçando um largo sorriso.
– Estamos solicitando mais atenção, por partes das autoridades,
preocupados em uma reunião de tais proporções. Obviamente, não nos darão
ouvidos, e quando os incidentes ocorrerem, bem… creio que qualquer
cidadão ficará indignado com tal atitude descabida, por parte dos
responsáveis pela segurança pública.
O advogado assentiu com a cabeça.
– O senhor está certo, Ministro, como sempre.
– Eu não, Adalberto; Ele. Ele está certo sempre.
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–
Boa noite, Abelardo; boa noite, telespectadores. Continua dramática a
situação aqui no Rio de Janeiro, bem como em diversas cidades
brasileiras. Temos muitos feridos, muitas pessoas ilhadas pela multidão,
refugiadas em bares e outros estabelecimentos, aqui no centro do Rio de
Janeiro.
– Alguma vítima fatal, Márcia?
–
Até o momento, de acordo com o Comando da Polícia Militar, não,
Abelardo. Inclusive, há pouco, falei com o Capitão Tenório, encarregado
do policiamento aqui do Rio, e ele nos garantiu que não há vítimas
fatais, apesar dos abusos desmedidos, que vêm ocorrendo.
– E Márcia, o Comando da Polícia já tem uma previsão de quando tudo se normalizará?
–
Olha, Abelardo, conforme o informe que nos foi passado, há poucos
minutos, a polícia espera debelar os manifestantes e liberar as pessoas,
ilhadas pela massa, nas próximas horas. Mas o que se vê por aqui é uma
verdadeira massa de guerra. Os manifestantes mais inflamados já entraram
em conflitos com os policiais, promovendo um verdadeiro quebra-quebra
pelo caminho, tendo como principais alvos os bares e casas lotéricas,
acusados de promover o jogo e a desordem. Alguns conhecidos pontos de
prostituição também foram atacados, e uma clínica, suspeita de realizar
abortos, foi completamente destruída, pela massa. Incitadas pelas
palavras de feito de José Cândido Renan, conhecido como O Ministro, da
Igreja da Luz e da Revelação, após uma pregação de mais de uma hora no
Maracanã, onde a multidão de fieis estava reunida, a massa saiu em
passeata, aos brados de dignidade moral e respeito à família e a
religião. Mas logo os policiais, designados para o acompanhamento da
peregrinação, observaram o aumento da exaltação, por parte de alguns
integrantes, e logo, a violência tomou conta de transeuntes e
freqüentadores de bares, acusados de conspurcar a pureza e de compactuar
com o Diabo e… atenção, Abelardo, neste momento está chegando a Tropa
de Choque. Como podemos ver nestas imagens exclusivas, a Topa de Choque
foi chamada e agora, está liberada para atuar.
– Você consegue alguma informação mais detalhada, Márcia?
–
No momento, estamos sendo convidados a deixar o local e seguirmos para
abrigos, mas vamos continuar por aqui, Abelardo, e a qualquer instante,
voltaremos com novas informações. Do Rio de Janeiro, Márcia Callabro.
–
E a qualquer momento, voltaremos do centro da cidade do Rio de Janeiro,
com novas informações de Márcia Callabro. A direção da Igreja da Luz e
da Revelação ainda não se manifestou a respeito dos tumultos, que estão
ocorrendo em vários municípios pelo país. É você, Júlia.
– Obrigada, Abelardo. Complica situação com reféns, em Minas Gerais. A seguir, após nossos comerciais.
18
–
E vamos, ao vivo, com Saulo Furlan, a Itajubéva, município de Minas
Gerais, localizado pouco mais de quarenta quilômetros de Germinade. Boa
noite, Saulo.
–
Boa noite, Júlia. A situação aqui em Itajubéva se encontra em um
impasse. Assim como em muitos municípios brasileiras, um grupo
significativo de pessoas, que acompanhavam as imagens da pregação de
João Cândido Renan, saíram em passeata, após a concentração deixar o
Maracanã, no Rio de Janeiro. A princípio, estas pessoas contornariam as
principais ruas da cidade e terminariam a passeata, apregoando cartazes e
faixas. Contudo, há aproximadamente duas horas atrás, eles se depararam
com a igreja local, e parte dessa multidão, os mais exaltados, por
sinal, cercaram a igreja e acabaram por invadi-la, aos brados de
vendidos e fiéis do Demônio, tomando como reféns o padre e alguns
freqüentadores. Pelo que se soube, tal fato se deve pela realização do
bingo dominical, tido como um pecado extremo, por aqueles que condenam
qualquer tipo de jogo.
– E qual a situação neste presente momento, Saulo. Você disse há pouco que havia um impasse.
–
A situação é crítica, Júlia. Há pouco mais de meia hora, depois de
várias negociações fracassadas, a polícia local tentou invadir a igreja,
contida por manifestantes do lado de fora. Dezenas de pessoas foram
presas, inclusive, temos a confirmação de apreensão de armas de fogo. Em
retaliação, agora o grupo no interior da igreja ameaça atear fogo à
construção, o que pode provocar uma verdadeira tragédia. O Corpo de
Bombeiros já foi acionado, mas encontra dificuldades para chegar até o
local, verdadeiramente tomado por centenas de pessoas, a esta altura. De
Itajubéva, Minas Gerais, Saulo Furlan.
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Dele era o fruto e dele seria a colheita.
O
pensamento lhe ressoava prazeroso pela mente e lhe aquecia o corpo,
esquecido e largado por sobre a cama, no quarto totalmente às escuras.
Sabia que se encontrava longe, mas podia jurar que ouvia os brados da multidão, a multidão que inflamara, à suas palavras.
Talvez ouvisse.
E isso o engrandecia.
Aquela
era a primavera que floria, após o longo inverno. Sua palavra era
poderosa, e os que a escutavam, se revelavam empolgados, dignos a se
ajoelharem perante Ele, e assim, cumprir-lhe os desígnios. Apesar de não
serem totalmente inocente – quem o seria? – estavam prontos a responder
ao chamado a que foram conclamados, com altivez e virtude, com força e
submissão.
Submissão. Esta era a palavra que procurava.
Uma lágrima lhe aflorou aos olhos, e por mais incrível que fosse, transparecia felicidade.
Seu país, seu povo, e principalmente, os pecadores, todos descobririam o significado de ser submisso a Ele.
Em
breve, seriam resgatados do cativeiro do Mal, libertados do poder do
inimigo. Muito em breve, todos os pecados seriam redimidos, na luz da
chama e no trovoar das palavras.
Continua...
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