sábado, 26 de maio de 2012

Carne de Primeira

 carne-copia

Desde pequeno, me habituei com uma alimentação alternativa. Não digo que era uma má alimentação, pois era a única que minha família tinha condições de me dar. Nunca desfrutei de algum conforto e poucas foram as escolhas que fiz por vontade própria nessa vida. Tive uma vida miserável. Vivia nas ruas, migrando de um pontilhão a outro. Integrante de uma família numerosa, nunca soube ao certo quantos irmãos tive – eram tantos. Agradeço por ter um nome, pois eu definitivamente tinha pré-requisitos para ser apenas um número, ou então, ter algum apelido constrangedor. Bom, de fato meu nome não é algo que me livre de constrangimento, mas ter um nome já é um grande começo.
Mas vamos falar de alimentação, afinal, ela é o principal tema da minha vida. Meu principal cardápio, desde a infância, foi o famoso ‘pão velho’. Quando tínhamos sorte, comíamos pães sem bolor e esses dias eram raros. Mas com o tempo, a necessidade de comer carne aumentou e passamos a olhar os cães vira-latas e os gatos de rua, com outros olhos. Eu ainda era criança quando provei pela primeira vez esse tipo de carne. Já era um garoto quando aprendi a matar, limpar e a preparar a carne de um cão. Em pouco tempo adquiri habilidade para fazer o abate perfeito e a facilidade no preparo da carne me rendeu um apelido carinhoso: Cuca. Fui nomeado o cozinheiro oficial da família.
Honrando o apelido, criei novos cardápios e quebrei a rotina de nossa alimentação. Meu menu ganhou dois novos pratos: ratos ou ratazanas – eram os prediletos dos homens, por serem saborosos e por serem feitos como porções individuais – e pombos – mais pedidos pelas mulheres e crianças, por serem menores e serem considerados carne branca.
Vivíamos bem e nossa alimentação tinha melhorado, se comparássemos aos tempos do pão velho e embolorado. Sempre matei a sede com água de torneira, mas por ficar em contato direto com tanto sangue, passei a aderir o rubro líquido em minha refeição. Alguns me chamaram de louco, porém não dei ouvido a eles, o sabor era realmente atraente.
A família estava ficando cada vez mais numerosa e era preciso estar sempre mudando de pontilhão, a fim de acharmos a matéria prima, para matar a fome de tantas bocas famintas. Era muita fome para poucos cães, gatos, ratos e pombos, que cruzavam o nosso caminho. Éramos um bando de gafanhotos e não tardou para que começássemos a brigar entre nós. Nacos de carne eram disputados com selvageria – tínhamos nos tornado animais. A princípio, as brigas eram de socos e ponta pés, mas logo se transformou em lutas em que usavam pedaços de pau como arma. Alguém sempre terminava desacordado.
Certo dia, uma mulher – que não sei dizer se era minha mãe ou minha tia – morreu sem causa específica. Chamaram por mim e pediram para que eu me livrasse do corpo, já que tinha experiência em lidar com coisas mortas. Estava quase terminando de abrir uma cova rasa, num terreno baldio, para jogar o corpo, quando tive a idéia de atualizar o meu cardápio e tentar novas fontes de carne. Longe dos demais, preparei uma porção para provar essa nova iguaria. A diferença no sabor era notável e, diferente daquilo que estávamos acostumados, logo notei que aquela carne era muito mais saborosa. Era uma carne de primeira. Provei outra parte do corpo e logo identifiquei as regiões para ter os melhores resultados e os melhores cortes também.
Levei a novidade para minha grande família e a aceitação de todos me surpreendeu. Não podia deixar de abastecer aquelas bocas famintas com tão apetitosa carne e revelar a origem da mesma; precisava conseguir mais, e consegui. Durante as brigas familiares, tentava agitar, estimular a violência, provocar uma nova morte acidental, mas ninguém queria matar; afinal de contas, ainda éramos uma família. Mas eu tinha ambição, queria sair das ruas, queria abrir um restaurante e ter o meu próprio negócio; e para isso, precisava de carne.
Numa das noites, após uma briga, peguei meu facão de abate e me aproximei de um dos brigões. Não sei dizer se era meu irmão, meu primo ou outro faminto qualquer; desci a lâmina com violência em seu pescoço. Não senti pena, nem arrependimento; matar uma pessoa foi o mesmo que matar um cão, até mais fácil. Nos dias seguintes, o sumiço do sujeito já tinha sido esquecido e todos saboreavam uma excelente carne.
Como disse, meu objetivo inicial era sair das ruas e, para isso, precisava de dinheiro. Tinha prazer em matar e preparar a carne humana, mas não era capaz de roubar dinheiro de ninguém. Não nasci para assaltar. Como todos da família estavam extasiados com a excelente alimentação, nenhum deles quis abrir mão do padrão de vida que já tinham adquirido e não contestaram quando comecei a cobrar a comida. Eu era dotado de um conhecimento que ninguém mais tinha e por isso, foi fácil manipulá-los, para que roubassem dinheiro em troca de comida.
Ainda precisava da matéria prima, então, me concentrei apenas em matar. Comecei com alguns da família, mas logo parti para outros indigentes desconhecidos que ficavam na região. E bem… confesso que comecei a atacar pessoas que passavam pela rua – somente depois de terem sido aprovadas pelo meu olhar clínico. Através do estudo, sabia dizer se a pessoa daria uma carne de primeira ou não. Mas eu não roubei, em toda a minha vida nunca fiz isso. Ganhei dinheiro de forma limpa, honesta, fazendo o meu trabalho – que, modéstia à parte, fazia muito bem.
Nem preciso dizer o quanto meu plano deu certo. Nunca em minha pobre vida tinha visto tanto dinheiro em minhas mãos. Surgiram mendigos de todos os cantos daquela cidade para comer da carne especial. Algumas pessoas, de qualidade de vida superior ao da minha família, também vinham atraídas pela novidade e pelo singular sabor daquela carne. Fiz muito dinheiro, fiz muitas vítimas, mas não existiam corpos. Eu fazia um trabalho perfeito, não deixava traços, nem mesmo pistas. O crime sempre foi perfeito. Sem sobras, sem desperdícios – de cabo a rabo.
Com o dinheiro que juntei, decidi seguir meus sonhos. Em uma noite qualquer, peguei minhas coisas e parti. Abandonei minhas origens, minha numerosa família e os pontilhões. Eu parti.
Abri um simples restaurante, longe dali, mas ainda no coração daquela cidade tumultuada. Não queria ver as mesmas bocas famintas, queria novos clientes, queria disseminar a arte de apreciar a carne humana, onde tudo era muito bem aproveitado. O segredo do negócio foi o sigilo. Eu não contava a ninguém a origem da carne. Mas não pense que eu queria enganar as pessoas, de forma alguma. Longe de mim. Apenas queria oferecer o meu produto e saber a opinião de quem o comia, sem a influência da origem. Queria criar apreciadores da verdadeira carne de primeira. Para alguns clientes que questionavam, dizia: “Não julgue antes de provar!”. E funcionava, o cliente aprovava e não mais perguntava.

Trabalhava sozinho. Só tinha algumas garotas para servir e para ficar no caixa. O trabalho de conseguir os corpos e o preparo de todas as refeições era feito por mim. A escolha de um corpo saudável e saboroso tinha que ser feita com cuidado, assim como a forma do abate. Com o sucesso do meu negócio, a demanda de corpos humanos aumentou assustadoramente. Eu precisava alimentar aquelas novas bocas famintas com o melhor produto. As caçadas noturnas começaram a ficar mais difíceis. Algumas noites, era preciso retornar com quatro ou cinco corpos, e minha matança já tinha sido notada. Os policiais rondavam a região como moscas famintas rondam a podridão. Queriam me pegar, mas não havia pistas, nem testemunhas. Eles não tinham nada.
Não irei entrar nos detalhes de minhas técnicas de abate, mas certo dia, em que perseguia discretamente uma jovem, de carne apetitosa, tive a sensação de estar sendo observado. Olhei ao redor e não vi nada de estranho. Continuei e em alguns segundos, a jovem estaria morta e o serviço seria, como sempre, muito bem feito. Sem demora, sem violência, sem desperdício e nem mesmo sangue – ainda tinha o hábito de bebê-lo. Serviço rápido e limpo. Mas instantes antes da jovem dar seu último suspiro, fui surpreendido por um policial, que estava investigando o caso. O sujeito estava nas sombras, escondido na escuridão da rua. Não pude fazer nada para poder me defender…
Meu restaurante foi descoberto, minha vida foi destruída e fui condenado a enfrentar a solitária, onde estou até hoje. Não me arrependo de nada do que fiz, pelo contrário. Soube que criei uma legião de apreciadores da carne de primeira, a matança continua pelas ruas. É uma pena que nem todos chegarão a ter o talento que tenho no preparo da carne humana.
Aqui, não tenho do que me queixar, apenas de uma coisa: a comida, a carne daqui… é terrível. Não consigo comer algo tão ruim quanto uma carne que não seja humana. O prato de comida volta da mesma forma que chega. Apenas bebo água, mas não pense que deixei o hábito de beber sangue, isso não.
Sem nada para fazer, e com a fome consumindo minha alma, coloquei minha cabeça para pensar. Lembrei-me da incrível capacidade que o ser humano tem de cicatrizar ferimentos. Foi pensando nisso que iniciei minha nova dieta. Comecei tirando filetes de carne dos meus dedos; do sangue, fazia o meu vinho. Não fiz o mesmo com a outra mão para não perder a precisão do corte, mas em poucos dias, já cortava bifes de meu braço. Sim, a dor era tremenda, mas o sabor justificava. Você já provou? Deveria.
Não contava com uma demora tão grande no processo de cicatrização. A fome apertava e eu precisava aproveitar outras partes do meu corpo. E foi assim que passei do braço para as penas, das pernas para a barriga, da barriga para as costas – essa parte foi difícil, acredite -, das costas para as nádegas, e das nádegas, eu não sabia mais para onde ir. A fome apertava, mas a dor se tornou insuportável. Não conseguia mais me mover, nem mesmo dormir. O prato de comida era trocado dia após dia, mas me recusava a comê-lo. Não comeria, nem que me alimentassem pela boca. Foi só então que me dei conta de que estava para morrer. Não tinha outra saída.
Estou há quatro dias sem comer e a dois sem beber água. A comida está lá, ao lado do copo d´água, como sempre. O simples movimento de meus olhos já me causam dores insuportáveis, e é por isso que não pego a água. Sim, somente a água.
Minha visão falha e os sentidos ameaçam me abandonar, é a morte que chega para me buscar. Minha consciência está prestes a me abandonar, mas antes disso eu consigo sorrir ironicamente para a morte e dizer em voz alta: “Vou morrer. Morrer por falta de água e não por falta de carne. Não por falta da carne de primeira!”

 FIM
 
 =======================================SOBRE O AUTOR DEBUTANTE

LEONARDO PEZZELLA VIEIRA

  Jovem engenheiro de 25 anos. Iniciou sua vida literária escrevendo poesias e posteriormente contos e crônicas voltadas para o terror e ficção. Teve sua primeira publicação ao contribuir na coletânea de contos publicada pela Tarja Editorial chamada Visões de São Paulo em 2006. Atualmente tem seus textos publicados em seu blog pessoal:


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