Desde pequeno, me
habituei com uma alimentação alternativa. Não digo que era uma má
alimentação, pois era a única que minha família tinha condições de me
dar. Nunca desfrutei de algum conforto e poucas foram as escolhas que
fiz por vontade própria nessa vida. Tive uma vida miserável. Vivia nas
ruas, migrando de um pontilhão a outro. Integrante de uma família
numerosa, nunca soube ao certo quantos irmãos tive – eram tantos.
Agradeço por ter um nome, pois eu definitivamente tinha pré-requisitos
para ser apenas um número, ou então, ter algum apelido constrangedor.
Bom, de fato meu nome não é algo que me livre de constrangimento, mas
ter um nome já é um grande começo.
Mas
vamos falar de alimentação, afinal, ela é o principal tema da minha
vida. Meu principal cardápio, desde a infância, foi o famoso ‘pão
velho’. Quando tínhamos sorte, comíamos pães sem bolor e esses dias eram
raros. Mas com o tempo, a necessidade de comer carne aumentou e
passamos a olhar os cães vira-latas e os gatos de rua, com outros olhos.
Eu ainda era criança quando provei pela primeira vez esse tipo de
carne. Já era um garoto quando aprendi a matar, limpar e a preparar a
carne de um cão. Em pouco tempo adquiri habilidade para fazer o abate
perfeito e a facilidade no preparo da carne me rendeu um apelido
carinhoso: Cuca. Fui nomeado o cozinheiro oficial da família.
Honrando o apelido, criei novos cardápios e quebrei a rotina de nossa alimentação. Meu menu
ganhou dois novos pratos: ratos ou ratazanas – eram os prediletos dos
homens, por serem saborosos e por serem feitos como porções individuais –
e pombos – mais pedidos pelas mulheres e crianças, por serem menores e
serem considerados carne branca.
Vivíamos
bem e nossa alimentação tinha melhorado, se comparássemos aos tempos do
pão velho e embolorado. Sempre matei a sede com água de torneira, mas
por ficar em contato direto com tanto sangue, passei a aderir o rubro
líquido em minha refeição. Alguns me chamaram de louco, porém não dei
ouvido a eles, o sabor era realmente atraente.
A
família estava ficando cada vez mais numerosa e era preciso estar
sempre mudando de pontilhão, a fim de acharmos a matéria prima, para
matar a fome de tantas bocas famintas. Era muita fome para poucos cães,
gatos, ratos e pombos, que cruzavam o nosso caminho. Éramos um bando de
gafanhotos e não tardou para que começássemos a brigar entre nós. Nacos
de carne eram disputados com selvageria – tínhamos nos tornado animais. A
princípio, as brigas eram de socos e ponta pés, mas logo se transformou
em lutas em que usavam pedaços de pau como arma. Alguém sempre
terminava desacordado.
Certo
dia, uma mulher – que não sei dizer se era minha mãe ou minha tia –
morreu sem causa específica. Chamaram por mim e pediram para que eu me
livrasse do corpo, já que tinha experiência em lidar com coisas mortas.
Estava quase terminando de abrir uma cova rasa, num terreno baldio, para
jogar o corpo, quando tive a idéia de atualizar o meu cardápio e tentar
novas fontes de carne. Longe dos demais, preparei uma porção para
provar essa nova iguaria. A diferença no sabor era notável e, diferente
daquilo que estávamos acostumados, logo notei que aquela carne era muito
mais saborosa. Era uma carne de primeira. Provei outra parte do corpo e
logo identifiquei as regiões para ter os melhores resultados e os
melhores cortes também.
Levei
a novidade para minha grande família e a aceitação de todos me
surpreendeu. Não podia deixar de abastecer aquelas bocas famintas com
tão apetitosa carne e revelar a origem da mesma; precisava conseguir
mais, e consegui. Durante as brigas familiares, tentava agitar,
estimular a violência, provocar uma nova morte acidental, mas ninguém
queria matar; afinal de contas, ainda éramos uma família. Mas eu tinha
ambição, queria sair das ruas, queria abrir um restaurante e ter o meu
próprio negócio; e para isso, precisava de carne.
Numa
das noites, após uma briga, peguei meu facão de abate e me aproximei de
um dos brigões. Não sei dizer se era meu irmão, meu primo ou outro
faminto qualquer; desci a lâmina com violência em seu pescoço. Não senti
pena, nem arrependimento; matar uma pessoa foi o mesmo que matar um
cão, até mais fácil. Nos dias seguintes, o sumiço do sujeito já tinha
sido esquecido e todos saboreavam uma excelente carne.
Como
disse, meu objetivo inicial era sair das ruas e, para isso, precisava
de dinheiro. Tinha prazer em matar e preparar a carne humana, mas não
era capaz de roubar dinheiro de ninguém. Não nasci para assaltar. Como
todos da família estavam extasiados com a excelente alimentação, nenhum
deles quis abrir mão do padrão de vida que já tinham adquirido e não
contestaram quando comecei a cobrar a comida. Eu era dotado de um
conhecimento que ninguém mais tinha e por isso, foi fácil manipulá-los,
para que roubassem dinheiro em troca de comida.
Ainda precisava da matéria prima, então, me concentrei apenas em matar. Comecei
com alguns da família, mas logo parti para outros indigentes
desconhecidos que ficavam na região. E bem… confesso que comecei a
atacar pessoas que passavam pela rua – somente depois de terem sido
aprovadas pelo meu olhar clínico. Através do estudo, sabia dizer se a
pessoa daria uma carne de primeira ou não. Mas eu não roubei, em toda a
minha vida nunca fiz isso. Ganhei dinheiro de forma limpa, honesta,
fazendo o meu trabalho – que, modéstia à parte, fazia muito bem.
Nem
preciso dizer o quanto meu plano deu certo. Nunca em minha pobre vida
tinha visto tanto dinheiro em minhas mãos. Surgiram mendigos de todos os
cantos daquela cidade para comer da carne especial. Algumas pessoas, de
qualidade de vida superior ao da minha família, também vinham atraídas
pela novidade e pelo singular sabor daquela carne. Fiz muito dinheiro,
fiz muitas vítimas, mas não existiam corpos. Eu fazia um trabalho
perfeito, não deixava traços, nem mesmo pistas. O crime sempre foi
perfeito. Sem sobras, sem desperdícios – de cabo a rabo.
Com o dinheiro que juntei, decidi
seguir meus sonhos. Em uma noite qualquer, peguei minhas coisas e
parti. Abandonei minhas origens, minha numerosa família e os pontilhões.
Eu parti.
Abri
um simples restaurante, longe dali, mas ainda no coração daquela cidade
tumultuada. Não queria ver as mesmas bocas famintas, queria novos
clientes, queria disseminar a arte de apreciar a carne humana, onde tudo
era muito bem aproveitado. O segredo do negócio foi o sigilo. Eu não
contava a ninguém a origem da carne. Mas não pense que eu queria enganar
as pessoas, de forma alguma. Longe de mim. Apenas queria oferecer o meu
produto e saber a opinião de quem o comia, sem a influência da origem.
Queria criar apreciadores da verdadeira carne de primeira. Para alguns
clientes que questionavam, dizia: “Não julgue antes de provar!”. E
funcionava, o cliente aprovava e não mais perguntava.
Trabalhava
sozinho. Só tinha algumas garotas para servir e para ficar no caixa. O
trabalho de conseguir os corpos e o preparo de todas as refeições era
feito por mim. A escolha de um corpo saudável e saboroso tinha que ser
feita com cuidado, assim como a forma do abate. Com o sucesso do meu
negócio, a demanda de corpos humanos aumentou assustadoramente. Eu
precisava alimentar aquelas novas bocas famintas com o melhor produto.
As caçadas noturnas começaram a ficar mais difíceis. Algumas noites, era
preciso retornar com quatro ou cinco corpos, e minha matança já tinha
sido notada. Os policiais rondavam a região como moscas famintas rondam a
podridão. Queriam me pegar, mas não havia pistas, nem testemunhas. Eles
não tinham nada.
Não
irei entrar nos detalhes de minhas técnicas de abate, mas certo dia, em
que perseguia discretamente uma jovem, de carne apetitosa, tive a
sensação de estar sendo observado. Olhei ao redor e não vi nada de
estranho. Continuei e em alguns segundos, a jovem estaria morta e o
serviço seria, como sempre, muito bem feito. Sem demora, sem violência,
sem desperdício e nem mesmo sangue – ainda tinha o hábito de bebê-lo.
Serviço rápido e limpo. Mas instantes antes da jovem dar seu último
suspiro, fui surpreendido por um policial, que estava investigando o
caso. O sujeito estava nas sombras, escondido na escuridão da rua. Não
pude fazer nada para poder me defender…
Meu
restaurante foi descoberto, minha vida foi destruída e fui condenado a
enfrentar a solitária, onde estou até hoje. Não me arrependo de nada do
que fiz, pelo contrário. Soube que criei uma legião de apreciadores da
carne de primeira, a matança continua pelas ruas. É uma pena que nem
todos chegarão a ter o talento que tenho no preparo da carne humana.
Aqui,
não tenho do que me queixar, apenas de uma coisa: a comida, a carne
daqui… é terrível. Não consigo comer algo tão ruim quanto uma carne que
não seja humana. O prato de comida volta da mesma forma que chega.
Apenas bebo água, mas não pense que deixei o hábito de beber sangue,
isso não.
Sem
nada para fazer, e com a fome consumindo minha alma, coloquei minha
cabeça para pensar. Lembrei-me da incrível capacidade que o ser humano
tem de cicatrizar ferimentos. Foi pensando nisso que iniciei minha nova
dieta. Comecei tirando filetes de carne dos meus dedos; do sangue, fazia
o meu vinho. Não fiz o mesmo com a outra mão para não perder a precisão
do corte, mas em poucos dias, já cortava bifes de meu braço. Sim, a dor
era tremenda, mas o sabor justificava. Você já provou? Deveria.
Não
contava com uma demora tão grande no processo de cicatrização. A fome
apertava e eu precisava aproveitar outras partes do meu corpo. E foi
assim que passei do braço para as penas, das pernas para a barriga, da
barriga para as costas – essa parte foi difícil, acredite -, das costas
para as nádegas, e das nádegas, eu não sabia mais para onde ir. A fome
apertava, mas a dor se tornou insuportável. Não conseguia mais me mover,
nem mesmo dormir. O prato de comida era trocado dia após dia, mas me
recusava a comê-lo. Não comeria, nem que me alimentassem pela boca. Foi
só então que me dei conta de que estava para morrer. Não tinha outra
saída.
Estou
há quatro dias sem comer e a dois sem beber água. A comida está lá, ao
lado do copo d´água, como sempre. O simples movimento de meus olhos já
me causam dores insuportáveis, e é por isso que não pego a água. Sim,
somente a água.
Minha
visão falha e os sentidos ameaçam me abandonar, é a morte que chega
para me buscar. Minha consciência está prestes a me abandonar, mas antes
disso eu consigo sorrir ironicamente para a morte e dizer em voz alta:
“Vou morrer. Morrer por falta de água e não por falta de carne. Não por
falta da carne de primeira!”
FIM
=======================================SOBRE O AUTOR DEBUTANTE
LEONARDO PEZZELLA VIEIRA
Jovem engenheiro de 25 anos. Iniciou sua vida literária escrevendo
poesias e posteriormente contos e crônicas voltadas para o terror e
ficção. Teve sua primeira publicação ao contribuir na coletânea de
contos publicada pela Tarja Editorial chamada Visões de São Paulo em
2006. Atualmente tem seus textos publicados em seu blog pessoal:
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