Era
uma noite de sábado como todas as outras, embora os noticiários
tivessem dito o contrario; a tempestade que atingia Curitiba parecia não
acabar. O bairro de Medison fora, em outras épocas, um bairro perigoso,
onde a criminalidade tomava conta impunemente, um bairro de periferia
dentro da capital do Paraná.
A
chuva caia forte, ao longe, podia se ver uma forte luz, esta que vinha
do internato municipal de Medison, uma espécie de colégio interno para
crianças. O brilho imponente em meio a escuridão estava só, era a única
luz que se avistava em todo o quarteirão. Uma janela iluminada.
A
tempestade dificultava a visão do internato, que só podia ser visto
quando um raio rompia a escuridão. Uma solitária figura humana observa
de longe a janela iluminada. Um homem, em uma de suas mãos segurava
fortemente um guarda-chuva, que o vento teimava em tentar içar.
Lentamente colocou a outra mão no bolso da calça. Tirou dali uma faca.
Olhou
mais uma vez para a janela, seus olhos negros encheram-se de lágrimas, o
sabor salgado tocou-lhe suavemente a boca, engoliu e começou a andar em
direção do antigo prédio. Um raio rompeu a escuridão.
== == == ==
Ana
olhou para as crianças, eram doze, não podia ouvir seu namorado André,
que reclamava ao telefone, com tom de voz áspero pediu para as crianças
pararem de fazer bagunça. Elas deram os ombros, e continuaram a
gargalhar com as palhaçadas do Jonny Bravo, no canal infantil da TV.
Ana
suspirou, disse que logo conseguiria um tempo para passar com André,
que tudo isso iria passar logo, as coisas iriam melhorar. Um raio
eclodiu pela janela, as luzes apagaram, as crianças começaram a gritar,
Ana fez um movimento para acalmá-las, quando, de súbito, mais rápido do
que se foi, a luz voltou, e o Jonny Bravo continuou pulando na TV.
* * * * *
No
andar inferior tudo estava tranqüilo. Na porta de entrada um crucifixo
pendurado onde jazia a figura de cristo, um crucifixo pequeno, um raio
iluminou toda a sala, e o rosto do cristo crucificado; de súbito a
maçaneta da porta virou, trancada. Outro raio, Ana teve a impressão de
ouvir algum barulho, mas deu de ombros. Outro raio cruzou o céu rasgando
as trevas. Na sala a porta ainda estava trancada, o mesmo, porém, não
acontecia com a janela, que estava totalmente aberta. A chuva que até
inundava lá fora, agora, caia também dentro da sala.
O
invasor olhou para o relógio que quebrava tristemente o silêncio da
sala, foi quando viu um vulto, que se movimentava lentamente bem atrás
dele.
O
invasor mordeu os lábios, serrou os dentes e segurou fortemente a faca,
respirou fundo e virou abruptamente para seu opositor, um raio iluminou
toda a sala, o invasor caiu sobre seus próprios joelhos, respirando
rapidamente, era um espelho.
A tempestade castigava o solo, raios e trovões disputavam o céu, uma luta continua, dura e sem possibilidade de trégua.
* * * * *
Todos
diziam que André era um cara estranho, de maus hábitos, um tipo de
poucos amigos e palavras duras, Ana não se importava com isso, ela
verdadeiramente o amava, foi a ultima frase que disse antes de desligar o
telefone. Escondeu o sorriso e disse para as crianças desligarem a TV.
Todas protestaram. Uma das crianças pediu um copo de água, Ana desceu
para buscar.
No
andar debaixo o invasor estava subindo a escada, quando ouviu o barulho
da porta de cima, desceu rapidamente a escadaria e se escondeu no
pequeno vão da mesma. Ana desceu lentamente, degrau por degrau, uma mão
no corrimão e a outra tateando a parede. Tinha medo de cair. O sétimo
degrau estava solto, pisou nele com cuidado, ele protestou soltando um
ranger doloroso, Ana travou a mão contra a parede; já havia ouvido
diversas histórias de pessoas que conseguiam se matar dentro de casa,
passou para o oitavo degrau; o nono, a descida, daqui para frente, seria
mais tranqüila.
Seus
olhos ainda não estavam acostumados com a escuridão, maldito
interruptor antigo, havia deixado de funcionar a semana passada e nunca
mais voltara. Nota mental: Comprar velas ligar para um eletricista. Ela
adentrou a sala e passou direto para a cozinha. Não reparou o invasor no
vão da escada. Não percebeu a faca em sua mão. A escuridão escondeu seu
sorriso carregado de maldade. Colocou um copo debaixo da torneira do
filtro, e pensava em André, como ele era carinhoso, atencioso. Lembrou
de sua ultima briga, instantes atrás. Ele havia sido duro, palavras
secas, palavras duras. Nada que uma deliciosa noite de amor não
resolveria. Ana conhecia muitas ‘maneiras’ de deixá-lo feliz. Perdida
nesses pensamentos foi interrompida pela água, que o copo não conseguiu
conter. Fechou a torneira. Começou a andar em direção da sala. Teria
subido as escadas não tivesse se arrepiado com o vento gelado em suas
costas. Olhou para a direita, janela aberta. Fez menção de fechá-la,
quando tomou um susto; deixou cair o copo. No chão havia uma poça de
água encharcando o carpete, da poça uma pequena trilha, passos; passos
humanos. O mundo girou, uma voz gritou dentro de seus mais íntimos
pensamentos:
“As
crianças!”, foi a única coisa que conseguiu pensar enquanto subia as
escadas correndo. A porta estava entreaberta, Ana a empurrou, respirou
fundo e entrou, aparentemente estava tudo normal. Aparentemente. Olhou
diretamente para as crianças, estavam sorrindo. Subitamente pararam de
sorrir. Sentiu uma pancada forte na cabeça. Caiu. Levando a mão até a
testa, sentiu um crescente arder, olhando para a mão viu: Sangue. Outra
pancada na cabeça, seu queixo tocou fortemente o solo. Mais sangue,
dessa vez o que saltou de sua cabeça, tingindo a parede, que deixou de
ser branca.
As
crianças começaram a gritar, tentou se levantar, num esforço em vão
apoiou as mãos no chão. O sangue já cobria um dos olhos, tentou enxergar
pelo outro. As crianças gritavam. Gritos de medo. Gritos de dor. Outra
pancada na cabeça, seu corpo fervia, queimava com o sangue jorrando, ela
olhou para as crianças, uma barra de ferro caiu na sua frente, ela viu
um homem de costas andando em direção das crianças.
– Acabou! – Disse o invasor.
Seus olhos se fixaram num detalhe. Um tênis azul. Um tênis conhecido. Tentou
gritar, perguntar porquê, a voz não saia, ela o viu puxar a faca, foi a
última coisa que viu, antes que seu corpo perdesse a vida.
FIM
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