Tradução e adaptação: Regina Drummond
Conradin
tinha dez anos quando o médico decretou que ele não teria mais do que
cinco para viver. Mas a opinião desse médico meloso e incompetente não
valia nada para Mrs. De Ropp.
Mrs.
De Ropp, prima e tutora de Conradin, representava aos olhos do garoto
os três quintos do que o mundo continha de inevitável, de desagradável e
de real. Em perpétuo conflito, os outros dois quintos se resumiam a ele
mesmo e a sua imaginação. Qualquer dia desses, fantasiava Conradin, ele
terminaria por desmoronar sob o peso esmagante das coisas inevitáveis e
difíceis – tais como as doenças, a vigilância sufocante de que era
objeto e o tédio mortal que o destruía. Não fosse a imaginação
desenfreada que a solidão costuma estimular, há muito ele já teria
sucumbido.
Mrs.
De Ropp jamais confessaria que não gostava de Conradin. Talvez tivesse
uma vaga consciência de que contrariá-lo “para o seu bem” era um dever
ao qual deveria se dedicar, mas admitir isso seria outra história. Já
Conradin, ele a odiava do fundo do coração, embora se esforçasse para
dissimular. Os pequenos prazeres que se proporcionava adquiriam um sabor
particular quando sabia que desagradariam a sua tutora.
O
jardim, morno e sem vida, sobre o qual se debruçavam tantas janelas
prontas a se abrir para chamá-lo à ordem – não faça isso, faça aquilo,
venha tomar seus remédios – não o atraía muito. Havia, porém, num canto
esquecido, meio escondido por um pequeno e triste bosque, uma casinha
onde, em tempos idos, eram guardadas as ferramentas. Nela Conradin criou
o seu refúgio, o seu porto seguro, um local mágico. Segundo seu humor,
ele a transformava em sala de jogos ou catedral, povoando-a com uma
legião de fantasmas familiares, evocações saídas de histórias antigas ou
da sua própria imaginação. Ela podia ainda se orgulhar de possuir dois
pensionistas em carne e osso: em um canto vivia uma pobre galinha meio
depenada, a quem ele dedicava uma afeição que lá fora raramente tinha
ocasião de exprimir; um pouco afastado, na obscuridade, havia uma grande
caixa com dois compartimentos, sendo um fechado na frente por barras de
ferro. Ela abrigava um furão.
A
gaiola e o animal foram introduzidos clandestinamente por um jovem e
simpático açougueiro, em troca de algumas moedas de prata que Conradin
economizara muito em segredo, durante um longo tempo. Ele morria de medo
desse animal de pelo macio e dentes pontudos, mas esse era o seu bem
mais precioso. A presença do furão no local enchia Conradin de uma
alegria secreta misturada com medo, e nunca deveria ser conhecida por
“Aquela mulher”, que era assim que ele, em pensamento, se referia à
prima.
Um
dia, e só Deus sabe de onde lhe teria vindo a inspiração, o garoto
conseguiu encontrar um nome maravilhoso para o animal: Sredni Vashtar. E
logo ele foi elevado ao status de divindade, a quem Conradin prestava
um verdadeiro culto.
Uma
vez por semana, Aquela Mulher ia à igreja, levando o garoto consigo.
Para ele, o serviço religioso não era mais do que um ritual estranho e
incompreensível, mas deu-lhe a orientação necessária para que criasse
outros rituais. Assim, todas as terças-feiras, na penumbra bolorenta e
silenciosa do seu templo, ele se ajoelhava na frente da gaiola de
madeira e adorava Sredni Vashtar, o Grande Furão. Conradin elaborara um
complexo cerimonial, cheio de misticismo. À guisa de oferenda, ele
colocava flores vermelhas no altar, já que Sredni Vashtar era um deus
que encarnava a ferocidade e a impaciência, enquanto os deus Daquela
Mulher, a partir do que Conradin pudera observar, professava exatamente o
contrário. Por ocasião das festas especiais, ele espalhava noz-moscada
ralada diante da gaiola e o rito exigia que ela tivesse sido roubada.
Essas
cerimônias não respeitavam um calendário preciso e tinham lugar
normalmente por ocasião de algum evento excepcional. Assim, quando Mrs.
De Ropp sofreu, por três dias, uma fenomenal dor de dentes, Conradin
prolongou a festa e celebrou durante todo o período, quase se
convencendo realmente de que Sredni Vashtar era pessoalmente responsável
pelo infortúnio da prima. Se a dor tivesse persistido um dia mais, a
reserva de noz-moscada da cozinha teria desaparecido por completo.
A
galinha nunca tinha sido convidada para participar do culto a Sredni
Vashtar. Muito tempo antes, Conradin havia decretado que ela era
anabaptista. Ele não tinha a menor ideia do que poderia ser o
anabaptistismo, mas esperava secretamente que fosse algo extravagante e
não muito respeitável. Uma vez que Mrs. De Ropp representava a própria
imagem da respeitabilidade, toda respeitabilidade tornava-se detestável.
Após algum tempo, o interesse de Conradin pela velha casinha de ferramentas acabou por atrair a atenção da tutora.
– Não é bom para ele viver enfiado nesse lugar, faça chuva ou faça sol! – decretou ela, imediatamente.
E foi assim que, uma bela manhã, ela anunciou, durante o desjejum, que a
galinha tinha sido vendida e levada embora durante a noite. Com os seus
olhos míopes, ela encarava Conradin, esperando uma explosão de cólera e
tristeza, que se apressaria a reprimir sob um dilúvio de recomendações.
Mas o garoto não disse nada: não havia nada a dizer. Alguma coisa,
talvez, no seu rosto pálido e determinado, fez nascer nela um remorso
fugidio, pois, à tarde, havia pão assado para acompanhar o chá, algo que
ela tinha banido sob o pretexto de que não era bom para ele. Mas
Conradin nem sequer tocou no mimo e, assim que pôde, desapareceu,
refugiando-se na casinha.
Naquele dia, o garoto introduziu uma invocação no culto ao deus da
gaiola. Normalmente, ele louvava suas qualidades, mas agora lhe pediu um
favor:
– Faça uma coisa para mim, Sredni Vashtar.
Conradin
não disse o que queria: na qualidade de deus, ele deveria saber. E,
quando olhou para o outro lado, agora vazio, sufocou um soluço e
retornou àquele mundo que tanto odiava.
A partir desse dia – noite após noite, na obscuridade quente do seu
quarto; no final da tarde, na casinha; pela manhã, ao se levantar –
Conradin dizia a sua amarga ladainha:
– Faça uma coisa para mim, Sredni Vashtar.
Vendo que as visitas à casa de ferramentas não tinham parado, Mrs. De Ropp decidiu fazer uma nova inspeção.
– O que você esconde lá? – perguntou ela. – Aposto que são porquinhos-da-índia! Vou dar sumiço neles, já!
Conradin não abriu a boca, mas Aquela Mulher fuçou o quarto até que
encontrou a chave cuidadosamente escondida. Na mesma hora, ela
dirigiu-se à casinha, para arrematar sua descoberta. Fazia frio, e o
garoto não tinha permissão para sair. Ele, então, foi postar-se à última
janela da sala de jantar, de onde podia ver a porta do seu refúgio
disfarçada por uma moita de arbustos. Viu quando a mulher penetrou na
casa. Imaginou-a abrindo a porta da gaiola sagrada e apertando os olhos
míopes para conseguir enxergar o leito de palha onde o seu deus
repousava. Talvez ela cutucasse a palha com um pedaço de pau, impaciente
e desajeitada… E Conradin murmurou a sua prece com fervor. Pedia, mas,
de fato, não acreditava que seu pedido seria atendido. Ele sabia que
Aquela Mulher iria logo sair, com um sorriso irônico pregado no canto da
boca, sorriso que ele tanto detestava, e que, dali a uma hora ou duas, o
jardineiro levaria embora o seu deus maravilhoso, que nem um deus mais
seria, mas apenas um simples furão marrom dentro de uma caixa. Ele sabia
também que Aquela Mulher triunfaria sempre, como agora, e que ele
estaria cada vez mais doente, tiranizado pela implacável sabedoria que
ela se atribuía. Até o dia que nada mais teria importância, e todos
teriam certeza de que o médico tinha razão. No seu sofrimento e
resignação pela derrota, ele começou a cantar baixinho o hino ao ídolo
ameaçado. Sua voz era forte e desafiante:
Sredni Vashtar avançou.
Tinha pensamentos vermelhos de sangue,
Mas seus caninos eram brancos.
Os inimigos imploraram misericórdia,
Mas ele lhes deu a morte.
Seja feita a sua vontade, ó Sredni Vashtar, o Magnífico.
Bruscamente, ele se calou e tornou a aproximar-se do vidro da janela,
para ver melhor lá fora. A porta da casinha continuava entreaberta, e os
minutos se arrastavam. Conradin viu pássaros esvoaçando e correndo pela
grama, em pequenos grupos. Contou-os e recontou-os, mantendo um olho
fixo na porta. A empregada entrou e pôs a mesa para o chá, enquanto
Conradin, sempre imóvel, perscrutava a porta.
Pouco
a pouco, a esperança foi abrindo caminho no coração do garoto e uma
auréola de triunfo iluminou os seus olhos. Uma vez mais, ele sussurrou o
hino da vitória e da destruição. Desta vez, foi recompensado: na
soleira da porta apareceu um animal longo e sinuoso, com o pelo
arruivado. Ele piscou os olhos à luz do dia. Em redor das mandíbulas e
do pescoço, manchas úmidas e sombrias maculavam sua pelagem. Conradin
caiu de joelhos, mas não sem antes ver quando o animal esgueirou-se no
meio das folhagens e tomou o rumo do riacho, no fundo do jardim, onde
desapareceu para sempre.
A empregada entrou na sala de jantar, perguntando pela senhora.
– Ela foi na direção da casinha do jardim, já faz um bom tempo – respondeu o garoto.
Enquanto
a empregada procurava pela patroa, Conradin pegou um garfo na gaveta do
armário, espetou nele um pedaço de pão e começou a assá-lo. E, durante
todo o tempo em que ele o dourou, depois de passar bastante manteiga,
antes de lentamente saboreá-lo, ouvia, vindo do corredor, os barulhos
entrecortados de bruscos silêncios, os gritos histéricos da empregada, o
eco das exclamações incrédulas provenientes da cozinha, os passos
precipitados e os pedidos de socorro. Enfim, após um breve período de
calma, soluços de pavor e passos cambaleantes de alguém que trazia um
pesado fardo às costas encheram a casa.
– Quem vai contar para a pobre criança? Eu não tenho coragem! – disse uma voz aguda.
Enquanto eles discutiam o assunto entre si, Conradin preparava um outro pedaço de pão para assar.
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário