Ano de 1204 Ab Urb Condita – A.U.C. (da Fundação de Roma).
Dies Martis antediem IV idos December.
Gália, Domínio do Imperator Valentiniano III.
Império Romano do Ocidente.
Atormentado, em busca de paz espiritual, vaguei durante cinco anos pelas regiões da Bithynia, Galática, Cilicia e Syrie, onde tive meu primeiro contato com o arco e flecha, até que, finalmente cheguei a Judaea e à cidade de Jerusalém, a Hierosolyma
romana, onde, entre os Lugares Sagrados, testemunhos dos últimos dias
de Jesus Cristo na terra, longe de Constantinopla e de suas acaloradas e
intermináveis discussões sobre a vida e a religião de Jesus Cristo, que
sempre terminavam em pontos de vistas diferentes dos Ensinamentos, e
que tanto me confundiam – chegaram até mesmo a dizer que Maria não era a
mãe do Cristo – pude finalmente encontrar a serenidade que me
permitisse buscar as respostas para os conflitos em minh’alma. Com
avidez procurei pela luz que dispersasse as sombras lançadas sobre mim
pela morte de Simão. E a encontrei.
A resposta para meu tormento veio em uma celebração realizada na ekklesia do Santo Sepulcro, onde o bispo, citando Jesus Cristo, em uma pregação nas Colinas próximas a Cafarnaum, na Galiléia, disse:
– Não é a vida mais importante que o alimento; e o corpo, mais que a roupa?
– O sofrimento, meus filhos, foi deixado por Deus entre nós para nos
lembrar; a vida e o corpo são mais importantes que o alimento e a roupa,
para que nós nos concentrássemos em curar o corpo e salvar vidas, não
em fazer guerras e causar a morte, porque, enquanto praticamos o mal,
nos esquecemos de nós mesmos e de nossos irmãos, pois saibam todos: o
caminho da Salvação passa pelo próximo.
Sábias palavras foram aquelas, que me reconfortaram e mostraram
que, com o tempo e o conhecimento da Palavra, as guerras seriam
esquecidas e toda a inteligência do homem seria direcionada para
melhorar a sua vida e a de seus semelhantes.
Ia a esta ekklesia todos os dias para assistir às
celebrações e conselhos daquele bom homem de nome Jacó, que depois
soube, se tratava de um grande arborista – um médico – com grandes
conhecimentos de ervas, poções e venenos. Algo que tínhamos em comum.
Nossa amizade não tardou.
As conversas que tínhamos sobre as coisas da Fé eram alegres e
esclarecedoras, ele me ensinou muito do que sabia sobre as ervas, e eu
fui um aluno dedicado. Foi através de Jacó, que era um homem de idade já
avançada, como denunciavam seus poucos e grisalhos cabelos, que fiquei
sabendo sobre o Mandylion, e do milagre envolto em torno desta
relíquia, que diziam ser um presente do próprio Jesus Cristo, o
Salvador, a Abgar V, senhor da cidade de Edessa que fica na região Entre
Rios.
A relíquia é uma imagem do rosto Jesus Cristo, impresso em uma
toalha de linho branco que Ele usara para enxugar o rosto durante o seu
martírio.
Disse-me ainda Jacó que esta Relíquia está perdida desde a perseguição aos cristãos daquela região durante o governo do Imperator
Cláudio, antecessor de Nero, que o Inferno tenha sua alma. Eu muito
gostaria, meu Senhor, de ver esta preciosa dádiva que era a imagem do
rosto de Jesus Cristo, imagine saber, em detalhes, como era a face do
Filho de Deus, mas é melhor o Mandylion estar perdido do que nas mãos do Dragão, que com certeza o usaria para com intenções malignas.
Juntando o que aprendera com Simão com o que me ensinava Jacó
eu, nos últimos anos, me tornara um arborista respeitado entre os
cidadãos, tanto Cristão como Judeus, que sempre me procuravam quando se
sentiam doentes ou com dores, o que me permitiu viver uma vida
confortável em Jerusalém.
Meu tempo se dividia em exercer minha profissão de arborista e
ajudar Jacó no atendimento que ele prestava para os desafortunados que o
procurava na ekklesia em busca de algum conforto para seus
males, Jacó os atendia a todos, sempre com a mesma deferência e nisso eu
o admirava. Mas em todos estes anos, meu Senhor, desde minha chegada a
esta terra, nada ouvira a respeito do Dragão, somente rumores
supersticiosos sobre mulheres que se tornavam monstros durante a noite e
saiam de suas casas para desenterrar e comer os corpos de pessoas recém
mortas.
De início estas histórias despertaram minha curiosidade, tanto
que, certa noite, segui uma mulher judia, casada, que era tida como um
destes monstros. O resultado foi um misto de frustração e zombeteira
alegria. A menos que o jovem com quem ela se encontrava fosse um morto
que caminhasse, o conceito que os homens desta terra tem de monstro é
bem diferente do meu. Estranhos costumes geram estranhos hábitos.
Após este pequeno incidente minhas noites se tornaram longas e
eu me dedicava ao estudo de textos sobre a Religião de Abraão, que
falavam da vinda do Cristo, o Salvador, ali chamado de Messias, absorto
nestes textos de rara beleza em muitos momentos desejei, do fundo do
coração, que o maldito Dragão estivesse morto, uma doença, acidente,
durante uma luta, qualquer coisa, desde que ele estivesse morto, mas
alguma coisa dentro de mim me dizia que não, o maldito ainda vivia e que
cedo ou tarde nossos destinos voltariam a se cruzar e que, quando isso
acontecesse, seria melhor que eu estivesse preparado.
*******
Certa noite, no mesmo ano em que subiu ao poder em Constantinopla o Imperator Teodósio
II, me procurou em minha casa, desesperado, um homem de nome Isaul, que
trazia nos braços o corpo desfalecido de uma criança. Dizia que era sua
filha e que fora atacada por um animal. As roupas da menina, porém,
estavam limpas, sem nenhuma mancha de sangue, o que não era normal
nestes casos, isso me deixou um pouco agitado.
Rapidamente pedi ao homem que entrasse e deitasse o corpo da
menina na mesa para que pudesse examiná-la. Acendi duas lâmpadas de
azeite e algumas velas de sebo e iluminei a menina, que depois fui
saber, se chamava Ruth e tinha 12 anos. Pude então confirmar meus
temores. Era tarde demais. Ela estava morta, a garganta da menina tinha
sido rasgada. Pedaços de pele e carne avermelhados pendiam sobre o
ferimento, indicando terem sido lacerados por dentes. As longas tiras de
pele mostravam que o animal tinha grandes presas pontiagudas. Seu rosto
estava pálido como a lua, até mesmo seus lábios não tinham cor, todo
seu sangue parecia ter sumido.
Os parentes da menina, que haviam chegado logo depois do
pai, ficaram desconsolados; sua mãe chorava muito e teve que ser
amparada pelas outras mulheres, o corpo da menina foi levado para a casa
dos pais, que ficava dentro dos muros da cidade.
Depois dos preparativos, e de algumas palavras ditas pelo
bom Jacó, o corpo foi enterrado nas terras da família nos arredores da
cidade de Jerusalém. Escondido dos olhares de todos, até mesmo do meu
amigo Jacó, aguardei o término do enterro.
De onde estava pude ver o todo o sepultamento e as
orações que seus parentes fizeram sobre seu túmulo, eles não marcaram o
lugar com uma cruz, como tu fazias meu Senhor. Rezei para que minhas
suspeitas estivessem erradas.
Eu já vira aquelas marcas antes, no pescoço de um jovem
em Constantinopla, e sabia o que elas podiam significar, eu não deixaria
o Dragão tomar a alma daquela criança inocente, por isso estava ali,
armado com minha gladius, um arco e algumas flechas; tinha trazido até uma pá, para o caso de ter que enterrá-la novamente.
A noite caiu rápido e o frio aumentou, cobri a cabeça com
o capuz do manto e me encolhi todo ao lado da árvore, isso amenizou um
pouco o desconforto. Aguardei até que alguma coisa acontecesse. O
silêncio era total, nada se ouvia, nem mesmo os insetos da noite
pareciam andar por ali, deve ser por isso que me assustei tanto ao ouvir
o uivo. Alto e demorado. Arrepiante. Decerto naquele momento muitas
pessoas se encolheram sob os mantos de dormir e rezaram para que Jesus
Cristo, Nosso Senhor, os livrasse do mal.
O uivo ainda ecoava na mata quando a terra sobre o túmulo
da menina começou a se mover, a princípio devagar, mas logo a terra
explodiu, e eu a vi, cabelos agitados pelo vento frio, olhos vermelhos e
brilhantes, boca escancarada mostrando grandes dentes brancos, que
pareciam presas de um cachorro.
Minha intuição não se enganara, desde a primeira vez que a
tinha visto, estendida sobre minha mesa, alguma coisa dentro de mim
parecia querer me avisar sobre o que tinha acontecido a ela, sobre o
perigo que ele representava e lá estava, saindo do seu leito de
descanso, uma criança tornada um monstro sanguinário.
Ela parecia perdida, sem saber o que fazer olhava para as
mãos, agora garras, detidamente e olhava para o céu, como se procurando
entender o que lhe acontecera.
Com voz rouca e inumana, começou a uivar.
Seu uivo cessou bruscamente e ela caiu de joelhos, seu
rosto se encheu de espanto quando viu a flecha, que acertara seu peito
com precisão mortal, com os olhos se apagando ela caiu para frente e a
flecha trespassou seu corpo.
Abaixando ao arco, vi quando ela caiu, minha pontaria
tinha sido perfeitos, os anos que passei treinando tinham valido a pena,
e o arco se mostrara uma arma letal contra os demônios.
Ao me aproximar, virei o corpo da menina com a pá e olhei
para seu rosto, e o que, a poucos momentos atrás, era a face do mal,
agora lembrava a pureza de um anjo, o ódio que sentia pelo Dragão
cresceu ainda mais.
Com a alma pesada, puxei a flecha do corpo da menina. E seus olhos se abriram.
Vermelhos e cheios de ódio, sua boca se escancarou e ela
mostrou seus dentes enormes, o som que saia da sua boca parecia o
sibilar de uma grande Naja, e, num reflexo, enterrei a flecha novamente
em seu peito, ela gritou de dor e se acalmou, o brilho em seus olhos
diminuiu e ela voltou a morrer. Meu corpo tremia de susto, que logo se
tornou raiva, desembainhei minha gladius e com vários golpes furiosos
cortei fora sua cabeça. Mais calmo, pude raciocinar melhor e então
percebi o que acontecera ali, eu estava enganado, os strigoi,
que era como Jorge da Capadócia os chamava, só ficam mortos enquanto os
objetos que perfurarem seus corações permanecerem no lugar, se
porventura o objeto for retirado, eles voltam a vida, mas se suas
cabeças forem cortadas fora eles morrem de verdade. Para testar minha
teoria puxei fora a flecha do corpo da menina, com bastante cuidado,
pronto para recolocá-la no lugar se fosse necessário, mas nada
aconteceu, ela estava realmente morta.
Enterrei a pequenina novamente, desta vez para sempre.
Com pesar, retomei o caminho de minha casa; certo que
meus dias na cidade Santa por fim terminaram. O Dragão deu provas de
vida, e, por certo, trama contra a Fé. Devo retomar minha sina, voltar a
encarar meu destino: levar a morte ao Dragão.
Que a Salvação seja minha paga.
A aventura continua no
livro inédito de James Andrade:
“Portais”…
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