segunda-feira, 21 de maio de 2012

Hierosolyma

Hierosolyma

Ano de 1204 Ab Urb Condita – A.U.C. (da Fundação de Roma).
Dies Martis antediem IV idos December.
Gália, Domínio do Imperator Valentiniano III.
Império Romano do Ocidente.

       Atormentado, em busca de paz espiritual, vaguei durante cinco anos pelas regiões da Bithynia, Galática, Cilicia e Syrie, onde tive meu primeiro contato com o arco e flecha, até que, finalmente cheguei a Judaea e à cidade de Jerusalém, a Hierosolyma romana, onde, entre os Lugares Sagrados, testemunhos dos últimos dias de Jesus Cristo na terra, longe de Constantinopla e de suas acaloradas e intermináveis discussões sobre a vida e a religião de Jesus Cristo, que sempre terminavam em pontos de vistas diferentes dos Ensinamentos, e que tanto me confundiam – chegaram até mesmo a dizer que Maria não era a mãe do Cristo – pude finalmente encontrar a serenidade que me permitisse buscar as respostas para os conflitos em minh’alma. Com avidez procurei pela luz que dispersasse as sombras lançadas sobre mim pela morte de Simão. E a encontrei.
     A resposta para meu tormento veio em uma celebração realizada na ekklesia do Santo Sepulcro, onde o bispo, citando Jesus Cristo, em uma pregação nas Colinas próximas a Cafarnaum, na Galiléia, disse:
      – Não é a vida mais importante que o alimento; e o corpo, mais que a roupa? – O sofrimento, meus filhos, foi deixado por Deus entre nós para nos lembrar; a vida e o corpo são mais importantes que o alimento e a roupa, para que nós nos concentrássemos em curar o corpo e salvar vidas, não em fazer guerras e causar a morte, porque, enquanto praticamos o mal, nos esquecemos de nós mesmos e de nossos irmãos, pois saibam todos: o caminho da Salvação passa pelo próximo.
      Sábias palavras foram aquelas, que me reconfortaram e mostraram que, com o tempo e o conhecimento da Palavra, as guerras seriam esquecidas e toda a inteligência do homem seria direcionada para melhorar a sua vida e a de seus semelhantes.
       Ia a esta ekklesia todos os dias para assistir às celebrações e conselhos daquele bom homem de nome Jacó, que depois soube, se tratava de um grande arborista – um médico – com grandes conhecimentos de ervas, poções e venenos. Algo que tínhamos em comum.
       Nossa amizade não tardou.
       As conversas que tínhamos sobre as coisas da Fé eram alegres e esclarecedoras, ele me ensinou muito do que sabia sobre as ervas, e eu fui um aluno dedicado. Foi através de Jacó, que era um homem de idade já avançada, como denunciavam seus poucos e grisalhos cabelos, que fiquei sabendo sobre o Mandylion, e do milagre envolto em torno desta relíquia, que diziam ser um presente do próprio Jesus Cristo, o Salvador, a Abgar V, senhor da cidade de Edessa que fica na região Entre Rios.
       A relíquia é uma imagem do rosto Jesus Cristo, impresso em uma toalha de linho branco que Ele usara para enxugar o rosto durante o seu martírio.
      Disse-me ainda Jacó que esta Relíquia está perdida desde a perseguição aos cristãos daquela região durante o governo do Imperator Cláudio, antecessor de Nero, que o Inferno tenha sua alma. Eu muito gostaria, meu Senhor, de ver esta preciosa dádiva que era a imagem do rosto de Jesus Cristo, imagine saber, em detalhes, como era a face do Filho de Deus, mas é melhor o Mandylion estar perdido do que nas mãos do Dragão, que com certeza o usaria para com intenções malignas.
     Juntando o que aprendera com Simão com o que me ensinava Jacó eu, nos últimos anos, me tornara um arborista respeitado entre os cidadãos, tanto Cristão como Judeus, que sempre me procuravam quando se sentiam doentes ou com dores, o que me permitiu viver uma vida confortável em Jerusalém.
    Meu tempo se dividia em exercer minha profissão de arborista e ajudar Jacó no atendimento que ele prestava para os desafortunados que o procurava na ekklesia em busca de algum conforto para seus males, Jacó os atendia a todos, sempre com a mesma deferência e nisso eu o admirava. Mas em todos estes anos, meu Senhor, desde minha chegada a esta terra, nada ouvira a respeito do Dragão, somente rumores supersticiosos sobre mulheres que se tornavam monstros durante a noite e saiam de suas casas para desenterrar e comer os corpos de pessoas recém mortas.
       De início estas histórias despertaram minha curiosidade, tanto que, certa noite, segui uma mulher judia, casada, que era tida como um destes monstros. O resultado foi um misto de frustração e zombeteira alegria. A menos que o jovem com quem ela se encontrava fosse um morto que caminhasse, o conceito que os homens desta terra tem de monstro é bem diferente do meu. Estranhos costumes geram estranhos hábitos.
      Após este pequeno incidente minhas noites se tornaram longas e eu me dedicava ao estudo de textos sobre a Religião de Abraão, que falavam da vinda do Cristo, o Salvador, ali chamado de Messias, absorto nestes textos de rara beleza em muitos momentos desejei, do fundo do coração, que o maldito Dragão estivesse morto, uma doença, acidente, durante uma luta, qualquer coisa, desde que ele estivesse morto, mas alguma coisa dentro de mim me dizia que não, o maldito ainda vivia e que cedo ou tarde nossos destinos voltariam a se cruzar e que, quando isso acontecesse, seria melhor que eu estivesse preparado.
*******
      Certa noite, no mesmo ano em que subiu ao poder em Constantinopla o Imperator Teodósio II, me procurou em minha casa, desesperado, um homem de nome Isaul, que trazia nos braços o corpo desfalecido de uma criança. Dizia que era sua filha e que fora atacada por um animal. As roupas da menina, porém, estavam limpas, sem nenhuma mancha de sangue, o que não era normal nestes casos, isso me deixou um pouco agitado.
       Rapidamente pedi ao homem que entrasse e deitasse o corpo da menina na mesa para que pudesse examiná-la. Acendi duas lâmpadas de azeite e algumas velas de sebo e iluminei a menina, que depois fui saber, se chamava Ruth e tinha 12 anos. Pude então confirmar meus temores. Era tarde demais. Ela estava morta, a garganta da menina tinha sido rasgada. Pedaços de pele e carne avermelhados pendiam sobre o ferimento, indicando terem sido lacerados por dentes. As longas tiras de pele mostravam que o animal tinha grandes presas pontiagudas. Seu rosto estava pálido como a lua, até mesmo seus lábios não tinham cor, todo seu sangue parecia ter sumido.
       Não podia fazer mais nada, a não ser rezar pela sua alma. Disse isso aos seus pais.
       Os parentes da menina, que haviam chegado logo depois do pai, ficaram desconsolados; sua mãe chorava muito e teve que ser amparada pelas outras mulheres, o corpo da menina foi levado para a casa dos pais, que ficava dentro dos muros da cidade.
           Depois dos preparativos, e de algumas palavras ditas pelo bom Jacó, o corpo foi enterrado nas terras da família nos arredores da cidade de Jerusalém. Escondido dos olhares de todos, até mesmo do meu amigo Jacó, aguardei o término do enterro.
            De onde estava pude ver o todo o sepultamento e as orações que seus parentes fizeram sobre seu túmulo, eles não marcaram o lugar com uma cruz, como tu fazias meu Senhor. Rezei para que minhas suspeitas estivessem erradas.
            Eu já vira aquelas marcas antes, no pescoço de um jovem em Constantinopla, e sabia o que elas podiam significar, eu não deixaria o Dragão tomar a alma daquela criança inocente, por isso estava ali, armado com minha gladius, um arco e algumas flechas; tinha trazido até uma pá, para o caso de ter que enterrá-la novamente.
            A noite caiu rápido e o frio aumentou, cobri a cabeça com o capuz do manto e me encolhi todo ao lado da árvore, isso amenizou um pouco o desconforto. Aguardei até que alguma coisa acontecesse. O silêncio era total, nada se ouvia, nem mesmo os insetos da noite pareciam andar por ali, deve ser por isso que me assustei tanto ao ouvir o uivo. Alto e demorado. Arrepiante. Decerto naquele momento muitas pessoas se encolheram sob os mantos de dormir e rezaram para que Jesus Cristo, Nosso Senhor, os livrasse do mal.
            O uivo ainda ecoava na mata quando a terra sobre o túmulo da menina começou a se mover, a princípio devagar, mas logo a terra explodiu, e eu a vi, cabelos agitados pelo vento frio, olhos vermelhos e brilhantes, boca escancarada mostrando grandes dentes brancos, que pareciam presas de um cachorro.
            Minha intuição não se enganara, desde a primeira vez que a tinha visto, estendida sobre minha mesa, alguma coisa dentro de mim parecia querer me avisar sobre o que tinha acontecido a ela, sobre o perigo que ele representava e lá estava, saindo do seu leito de descanso, uma criança tornada um monstro sanguinário.
            Ela parecia perdida, sem saber o que fazer olhava para as mãos, agora garras, detidamente e olhava para o céu, como se procurando entender o que lhe acontecera.
            Com voz rouca e inumana, começou a uivar.
            Seu uivo cessou bruscamente e ela caiu de joelhos, seu rosto se encheu de espanto quando viu a flecha, que acertara seu peito com precisão mortal, com os olhos se apagando ela caiu para frente e a flecha trespassou seu corpo.
            Abaixando ao arco, vi quando ela caiu, minha pontaria tinha sido perfeitos, os anos que passei treinando tinham valido a pena, e o arco se mostrara uma arma letal contra os demônios.
            Ao me aproximar, virei o corpo da menina com a pá e olhei para seu rosto, e o que, a poucos momentos atrás, era a face do mal, agora lembrava a pureza de um anjo, o ódio que sentia pelo Dragão cresceu ainda mais.
            Com a alma pesada, puxei a flecha do corpo da menina. E seus olhos se abriram.
            Vermelhos e cheios de ódio, sua boca se escancarou e ela mostrou seus dentes enormes, o som que saia da sua boca parecia o sibilar de uma grande Naja, e, num reflexo, enterrei a flecha novamente em seu peito, ela gritou de dor e se acalmou, o brilho em seus olhos diminuiu e ela voltou a morrer. Meu corpo tremia de susto, que logo se tornou raiva, desembainhei minha gladius e com vários golpes furiosos cortei fora sua cabeça. Mais calmo, pude raciocinar melhor e então percebi o que acontecera ali, eu estava enganado, os strigoi, que era como Jorge da Capadócia os chamava, só ficam mortos enquanto os objetos que perfurarem seus corações permanecerem no lugar, se porventura o objeto for retirado, eles voltam a vida, mas se suas cabeças forem cortadas fora eles morrem de verdade. Para testar minha teoria puxei fora a flecha do corpo da menina, com bastante cuidado, pronto para recolocá-la no lugar se fosse necessário, mas nada aconteceu, ela estava realmente morta.
            Enterrei a pequenina novamente, desta vez para sempre.
            Com pesar, retomei o caminho de minha casa; certo que meus dias na cidade Santa por fim terminaram. O Dragão deu provas de vida, e, por certo, trama contra a Fé. Devo retomar minha sina, voltar a encarar meu destino: levar a morte ao Dragão.
            Que a Salvação seja minha paga. 
A aventura continua no
livro inédito de James Andrade:
 “Portais”


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