Ano de 1067 Ab Urb Condita – A.U.C. (da Fundação de Roma).
Dies Jovis antediem III calendas Julius.
Baética, Domínio do Imperator Licínio.
Já
faz algum tempo que estou em Málaca, na Baética, e, durante este tempo,
pude comprovar a veracidade dos relatos que me trouxeram aqui. Logo na
semana em que cheguei soube, por meio dos irmãos que me hospedaram, que,
nos limites ao norte da aldeia, no caminho que vai a Córdoba, os
moradores andavam assustados com um bárbaro, provavelmente vindo da
Hibéria, que tinha estranhos hábitos noturnos, diziam que caminhava à
noite com os olhos fechados, provavelmente se guiando como os morcegos,
que é uma das formas que o Dragão pode assumir.
Odiado
inimigo que, como capim em meio à seara, insiste em espalhar sua
perfídia em meio aos Filhos de Deus nestes tribulados dias. Desde a
liberação para a prática da Fé Verdadeira nos domínios do Imperator Constantino, no ano findo, se acirrou ainda mais a perseguição aos cristãos por parte do Imperator
Licínio. Os Patrícios de Roma nunca viram com bons olhos nós os
cristãos; deve ser porque nunca nos deixamos dominar por suas
pecaminosas idéias de adorar aos Césares como deuses. Só há um Único
Deus. Mas os olhos dos Patrícios são cegos e seus ouvidos, moucos;
perdidos em suas intrigas mesquinhas, não perceberam que o chamado de
Nosso Senhor Jesus Cristo já foi ouvido pela plebe e que, cedo ou tarde,
eles também ouvirão, nem que, para tanto, a voz dos catholicos
se esvaia em gritos; infinita é a misericórdia de Deus. E destemidos
são aqueles que agem em seu Nome contra os inimigos da Salvação.
Conforme
as instruções que tu me deste, meu Senhor, fui ao encalço do infame
durante o dia, que é quando estão mais fracos e lentos. Seguindo
orientações dos meus irmãos de fé, segui em direção ao lugar onde mora o
bárbaro antes do sol estar a pino, ante meridiem.
Pena
que meus irmãos não vieram comigo, não queriam pegar em armas, no que
estão totalmente corretos. A mensagem que Nosso Senhor Jesus Cristo nos
deixou é de bondade e amor ao próximo, ser fiel a estes preceitos é ser
um bom Cristão; os admiro por isso, porém como tu sabiamente disseste:
“mesmo a terra, para dar frutos é necessário que se abram sulcos com
ferramentas”; somos as ferramentas com as quais Deus destrói o demônio e
abre caminho na alma dos homens, para que nela floresça a salvação, não
pode ser o arado culpado por abrir caminho para a semente. Que o perdão
seja minha paga.
Após
longa cavalgada, cheguei na cabana onde o bárbaro morava, era um
casebre de estilo Gaulês; coberta de capim seco; muito velha e mal
cuidada, as paredes estavam ameaçando ruírem; deve ter encontrado a
morada vazia, ou a tomou de alguém. Uma pobre vítima de sua crueldade,
que será vingada, se assim for o desejo Dele.
Escondi
meu cavalo em meio às árvores e me aproximei da cabana, fiquei alguns
minutos escutando. Nada, nenhum barulho. Provavelmente estava dormindo.
Cautelosamente, com a cruz em uma das mãos e a gladius na outra, empurrei a porta de madeira com ombro e entrei, estava escura e fria. O que não era bom.
A
modesta morada era de forma mais ou menos circular; cepos de madeira
serviam de bancos e mesas. No centro da cabana, cheio de cinzas e
carvão, estava o buraco onde se acendia a fogueira, mais ao fundo, a
cama, feita de forquilhas e galhos; que estava vazia. Com a claridade
que entrava pela porta, percorri atentamente os olhos pela cabana, não
vi ninguém. Tão despojada era a morada que não havia sequer lugar onde
alguém pudesse se esconder. Minha cruz; amuleto dado a mim por tu, meu
Senhor; não emitia nenhuma luminosidade, o bárbaro não estava ali.
Sai da cabana, o sol estava ainda mais inclinado em direção ao poente. A tarde se vai, a hora suprema não tardará.
“Se o ele for um strigoi, deve se esconder em outro lugar durante o dia” – pensei.
Mas
terá de voltar cedo ou tarde, e quando fizer isso, a despeito do perigo
que as trevas trazem consigo, estarei esperando. Voltei para onde
estava meu cavalo, me escondendo entre as árvores, e, pacientemente,
aguardei.
* * * * *
O
tempo passou e com ele o Sol, que agora sumia no poente, pintando o céu
de vermelho; com a escuridão da noite chegou também minha presa, de
onde estava não pude distinguir seu rosto, mas seu vulto era enorme; o
homem parecia ter para mais de três côvados de altura, largo
como uma porta. Em uma das mãos segurava um arco e algumas flechas. Ao
chegar na cabana atirou ao chão a carcaça de um animal morto que trazia
no ombro, em seguida pendurou a caça ao lado da porta e entrou. Seu
tamanho me impressionou.
“Se for um strigoi
terei muito trabalho para enfrentá-lo durante a noite – pensei,
recordando do monstro que quase arrancou minha cabeça alguns anos atrás –
durante o dia minhas chances aumentarão” – conclui. Sempre de olho na
cabana, me preparei para passar a noite ali, vigiando, de manhã a
verdade se revelará.
A noite transcorria calma e com alguma claridade; a lua estava quase cheia. Sem descuidar de cabana, me convencia de que, no futuro, teria que me equipar melhor. Seriam necessárias armas mais adequadas para o tipo de combate que teria de enfrentar.
“Vou
procurar me manter mais informado sobre onde encontrar tais apetrechos”
– prometi a mim mesmo. Ao mesmo tempo um estalido em chamou a atenção.
A porta da cabana se abriu. Coloquei a mão sobre a gladius
e agucei meus sentidos, meu coração se acelerou, o bárbaro havia saído
da cabana e agora caminhava em direção à floresta, com os olhos
fechados, provavelmente indo se alimentar; mesmo sendo ainda noite não
podia permitir tal vilania. Com a gladius em punho, sai
rapidamente em seu encalço. O bárbaro caminhava lentamente, parecia em
transe, mas as aparências enganam. O Mal tem muitas faces. Com extrema
cautela me aproximei.
- Que seja feita a vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo – murmurei por entre meus dentes rilhados. E enfiei minha gladius nas costas do bárbaro.
Uma,
duas, três, muitas vezes. O demônio gritou, um lamento alto e sofrido,
parecia tristemente humano. Ainda gritando de dor, caiu de joelhos,
virando a cabeça em minha direção, seus olhos, que eu esperava
vermelhos, eram na verdade grandes e verdes, e estavam arregalados;
pareceu surpreso ao me ver. Eu o pegara desprevenido, por isso sequer
reagiu. Nem mesmo seus dentes cresceram. Suas unhas não se fizeram em
garras. Seu corpo não se evadiu no nada tal fumaça no ar. Não teve tempo
para nada disso. Criatura maldita. Aberração aos olhos da Igreja.
Com
um golpe dado com as duas mãos, abri sua cabeça, nodoando seus cabelos
cor de fogo, seu corpo caiu sem vida, fazendo uma poça de sangue quente e
viscoso em volta dos meus pés; seus olhos continuaram abertos, me
fitando tristemente.
“Um strigoi a menos” – disse a mim mesmo, enquanto limpava a lâmina da gladius que me fora dada por meu Senhor, Jorge da Capadócia. Em seu nome travo minha luta.
Infelizmente
não é deste que estou atrás, esta é somente uma de suas crias, meu
inimigo, o Dragão, ainda foge de mim, deixando atrás de si um rastro de
morte e perdição.
Uma trilha que sigo tal cão que persegue um coelho, não importando em que emaranhado de espinhos o animal se refugie.
Voltei
para a cabana, a carcaça que estava pendurada próximo à porta era de um
pequeno cervo; os malditos devem se alimentar de qualquer coisa que
esteja viva, por um momento pensei no que a criatura iria fazer com o
corpo daquele animal, Jorge havia dito que eles não comem a carne das
suas vítimas só bebem o sangue, talvez meu Senhor tenha se enganado, o
que duvido. Não importa, o maldito nunca concluirá seu intento. Tirei a
pedra de sílex do cinto e, com ajuda da gladius, ateei fogo na
cabana, nenhum demônio iria usá-la de novo. Aguardei um tempo, vendo o
fogo tomar conta da velha cabana, então peguei meu cavalo e fui embora.
Amanhã estarei de partida para o porto de Gades, escoltando um carregamento de garum, de um comerciante cristão que irá despachá-los para o porto de Ostia.
A
escolta de caravanas comerciais se faz necessária como nunca nestes
tempos de tensão; as relações entre Licínio e Constantino não andam nada
boas. Tal ocupação me permite viajar por todas as aldeias do vasto
Império, sendo elas cristãs ou não; minhas andanças me permitem
encontrar pessoas das mais diferentes regiões do mundo, e ouvir seu
relato; se nosso inimigo se manifestar, seja em qualquer lugar,
certamente saberei, meu Senhor, então teremos nossa vingança; se esta
for a vontade Dele.
Fim
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