quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Portador da Luz - Parte 1

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1

    Não havia vento de espécie alguma e o ar parado era quente e sufocante. A paisagem ao longe tremeluzia, apresentando-se deformada pelas ondulações de calor. Um pobre cachorro, tão magro que muitos jurariam que não seria possível que estivesse vivo, se arrastava a procura de uma sombra. Possivelmente, até à noite, estaria morto.
    Se algum lugar poderia ser descrito como o Inferno, certamente aquele era o lugar. Durante o dia, a temperatura atingia patamares indescritíveis, traduzidos em terras ressequidas e rachadas, em vastos rios transformados em córregos, e garbosos lagos, agora uma caricatura travestida em amontoados de poeira. Já havia meses, aquelas terras não viam o menor sinal de chuva ou brisa fresca, castigada pelo calor e pela seca destruidora e mortal.
    O homem se vestia de maneira simples, calças caqui e camisa branca, já um tanto surradas, contrastando com os sapatos, que apesar da fina poeira que a tudo permeava, se apresentavam impecavelmente limpos e engraxados.
    Ele caminhava ao sol, um livro velho, com a capa roída em vários pontos, à mão, uma antiga bíblia, e um crucifixo de madeira, bastante rústico e desgastado, na outra. Apenas um chapéu de palha envelhecido o protegia um pouco, mas fosse como fosse, não se incomodava pelos desconfortos. Até certo ponto, o desconforto era um preâmbulo para aquilo que se propunha a fazer, uma marca deixada por Deus àqueles que viviam sobre a Terra, lembrando os que não o seguissem, dos infortúnios maiores e inomináveis que haveriam de encontrar e sofrer pela eternidade afora. Era tido como um Deus misericordioso, mas ainda assim, severo, como gostava de lembrar.
    E era especialmente para estes desafortunados que o homem levaria a palavra, levaria a luz aos que precisavam ver, aos que teimavam em se deixar fechar os olhos, fosse pelo esquecimento, dos de mentes fracas, fosse pela distração, que a vida de pecados tragava os de espírito covarde.
    Mas ele se encontrava ali para lembrá-los, era o carrasco e ao mesmo tempo, o pai bondoso que acariciava o filho, o alento e a esperança, e para alento e esperança, não existia desconforto ou provação. Nunca.
     Muitas serão as pedras em que terei de pisar!
     Pegou-se pensando, lembrando as palavras de um antigo pregador.
     Mas serão estas mesmas pedras que edificarão meus caminhos!
   Completou o pensamento predileto com satisfação, sorrindo quase de maneira imperceptível, com o canto da boca.
    Muitos anos haviam se passado desde que ouvira aquelas palavras pela primeira vez, mas nunca as esquecera, e ainda possuíam o mesmo impacto sobre si, assim como tiveram em sua juventude. E graças àquelas palavras, e tentas outras que ouvira com louvor e gratidão, que se edificara, que fizera das pedras em seu caminho, a pavimentação que lhe sustentava a andança de fé, o levar da palavra àqueles que a desconheciam ou que acabaram por se desviar do caminho, o único caminho sagrado, que levava à redenção e ao momento maior de, por fim, se achar em paz e com a consciência tranqüila do dever cumprido e a missão realizada.
    E assim como antes, uma vez mais iria pregar. Contudo, desta feita seria diferente, seriam as últimas palavras que pregaria naquele pobre lugar. As últimas noites, quase sem dormir, haviam sido preenchidas por pensamentos e decisões, e mais do que nunca, sabia que era a hora de voltar para casa, de cumprir o destino que lhe era seu, que aprendera e enxergara depois de todos aqueles anos peregrinando pelas antigas colônias portuguesas no continente africano.
    Chegara à hora de mudar tal situação. Apesar de todos os esforços, as pessoas haviam perdido a devoção, o respeito e a temeridade pelo divino e o mais sagrado. Não eram apenas uns poucos, pequenos punhados aqui e ali, que se desviavam ou fraquejavam. Eram muitos, espalhados por todos os lugares, cantos, os mais escondidos e esquecidos recantos do planeta. Era o levante dos perdidos, dos que desdenhavam e dos ignorantes, daqueles que faziam das mãos e atitudes, instrumentos propício ao inimigo maior, ao Mal infinito, ao Diabo.
    No entanto, tudo isto iria mudar. Iria lembrá-los, abrir-lhes as feridas pútridas e expô-los, para depois, purificá-los, sem clemência ou fraquejo para com os fracos e pecadores, para os que viraram as costas a Deus. Esta era sua missão divina e o dever de sua vida. O caminho que lhe fora revelado e para o qual fora agraciado, e em nome do Senhor, as pedras haveriam de ser pisadas, e sobre sangue e suor, sobre sofrimento e redenção, o caminho seria edificado mais uma vez.
    Pouco antes de alcançar a grande palhoça, erguida para proferir a palavra, o homem se deteve, voltando-se para a aldeia à volta, na qual vivera aqueles últimos meses, observando-a demoradamente, sabendo que aquele aglomerado de coitados nunca chegaria a ser uma cidade de verdade, por menor e esquecida que viesse a ser. Apesar da fé, aquele lugar seria sempre uma aldeia carente, doente e sem futuro.
    Por um momento, o aperto no coração o fez conjecturar que poderia mudar tudo aquilo, com o ouro e os diamantes, entretanto, logo desistiu da idéia. Não podia fraquejar, não podia. A riqueza acumulada, às custas de tantas outras vidas, tinha um propósito diferente, um outro objetivo, outro destino. A fé necessita de sacrifícios, e assim como ele, seus filhos também fariam sua parte, fosse aqui ou em seu lar, sua pátria.
    O homem subiu à palhoça e suspirou, como que sentindo o fardo que teria de carregar, porém após alguns segundos, como por milagre, pensou, já não havia mais cansaço ou pesar. Piscou repetidas vezes e começou a falar, e quando falou, a voz se inflamou e soou com ardor e convicção, com fé e decisão, o raio e o trovão.
    No entanto, ele próprio não as ouvia. Seus pensamentos se achavam em outro lugar, bem distante dali. Pensava em seu país, no lar que, em breve, reencontraria.
    Todavia, não seria simplesmente uma volta para casa, um retorno ao passado. Seria um novo começo e não voltaria sozinho. A luz e a palavra retornariam com ele.
    O raio e o trovão.

Continua...

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