1
Não
havia vento de espécie alguma e o ar parado era quente e sufocante. A
paisagem ao longe tremeluzia, apresentando-se deformada pelas ondulações
de calor. Um pobre cachorro, tão magro que muitos jurariam que não
seria possível que estivesse vivo, se arrastava a procura de uma sombra.
Possivelmente, até à noite, estaria morto.
Se
algum lugar poderia ser descrito como o Inferno, certamente aquele era o
lugar. Durante o dia, a temperatura atingia patamares indescritíveis,
traduzidos em terras ressequidas e rachadas, em vastos rios
transformados em córregos, e garbosos lagos, agora uma caricatura
travestida em amontoados de poeira. Já havia meses, aquelas terras não
viam o menor sinal de chuva ou brisa fresca, castigada pelo calor e pela
seca destruidora e mortal.
O
homem se vestia de maneira simples, calças caqui e camisa branca, já um
tanto surradas, contrastando com os sapatos, que apesar da fina poeira
que a tudo permeava, se apresentavam impecavelmente limpos e engraxados.
Ele
caminhava ao sol, um livro velho, com a capa roída em vários pontos, à
mão, uma antiga bíblia, e um crucifixo de madeira, bastante rústico e
desgastado, na outra. Apenas um chapéu de palha envelhecido o protegia
um pouco, mas fosse como fosse, não se incomodava pelos desconfortos.
Até certo ponto, o desconforto era um preâmbulo para aquilo que se
propunha a fazer, uma marca deixada por Deus àqueles que viviam sobre a
Terra, lembrando os que não o seguissem, dos infortúnios maiores e
inomináveis que haveriam de encontrar e sofrer pela eternidade afora.
Era tido como um Deus misericordioso, mas ainda assim, severo, como
gostava de lembrar.
E
era especialmente para estes desafortunados que o homem levaria a
palavra, levaria a luz aos que precisavam ver, aos que teimavam em se
deixar fechar os olhos, fosse pelo esquecimento, dos de mentes fracas,
fosse pela distração, que a vida de pecados tragava os de espírito
covarde.
Mas
ele se encontrava ali para lembrá-los, era o carrasco e ao mesmo tempo,
o pai bondoso que acariciava o filho, o alento e a esperança, e para
alento e esperança, não existia desconforto ou provação. Nunca.
Muitas serão as pedras em que terei de pisar!
Pegou-se pensando, lembrando as palavras de um antigo pregador.
Mas serão estas mesmas pedras que edificarão meus caminhos!
Completou o pensamento predileto com satisfação, sorrindo quase de maneira imperceptível, com o canto da boca.
Muitos
anos haviam se passado desde que ouvira aquelas palavras pela primeira
vez, mas nunca as esquecera, e ainda possuíam o mesmo impacto sobre si,
assim como tiveram em sua juventude. E graças àquelas palavras, e tentas
outras que ouvira com louvor e gratidão, que se edificara, que fizera
das pedras em seu caminho, a pavimentação que lhe sustentava a andança
de fé, o levar da palavra àqueles que a desconheciam ou que acabaram por
se desviar do caminho, o único caminho sagrado, que levava à redenção e
ao momento maior de, por fim, se achar em paz e com a consciência
tranqüila do dever cumprido e a missão realizada.
E
assim como antes, uma vez mais iria pregar. Contudo, desta feita seria
diferente, seriam as últimas palavras que pregaria naquele pobre lugar.
As últimas noites, quase sem dormir, haviam sido preenchidas por
pensamentos e decisões, e mais do que nunca, sabia que era a hora de
voltar para casa, de cumprir o destino que lhe era seu, que aprendera e
enxergara depois de todos aqueles anos peregrinando pelas antigas
colônias portuguesas no continente africano.
Chegara
à hora de mudar tal situação. Apesar de todos os esforços, as pessoas
haviam perdido a devoção, o respeito e a temeridade pelo divino e o mais
sagrado. Não eram apenas uns poucos, pequenos punhados aqui e ali, que
se desviavam ou fraquejavam. Eram muitos, espalhados por todos os
lugares, cantos, os mais escondidos e esquecidos recantos do planeta.
Era o levante dos perdidos, dos que desdenhavam e dos ignorantes,
daqueles que faziam das mãos e atitudes, instrumentos propício ao
inimigo maior, ao Mal infinito, ao Diabo.
No
entanto, tudo isto iria mudar. Iria lembrá-los, abrir-lhes as feridas
pútridas e expô-los, para depois, purificá-los, sem clemência ou
fraquejo para com os fracos e pecadores, para os que viraram as costas a
Deus. Esta era sua missão divina e o dever de sua vida. O caminho que
lhe fora revelado e para o qual fora agraciado, e em nome do Senhor, as
pedras haveriam de ser pisadas, e sobre sangue e suor, sobre sofrimento e
redenção, o caminho seria edificado mais uma vez.
Pouco
antes de alcançar a grande palhoça, erguida para proferir a palavra, o
homem se deteve, voltando-se para a aldeia à volta, na qual vivera
aqueles últimos meses, observando-a demoradamente, sabendo que aquele
aglomerado de coitados nunca chegaria a ser uma cidade de verdade, por
menor e esquecida que viesse a ser. Apesar da fé, aquele lugar seria
sempre uma aldeia carente, doente e sem futuro.
Por
um momento, o aperto no coração o fez conjecturar que poderia mudar
tudo aquilo, com o ouro e os diamantes, entretanto, logo desistiu da
idéia. Não podia fraquejar, não podia. A riqueza acumulada, às custas de
tantas outras vidas, tinha um propósito diferente, um outro objetivo,
outro destino. A fé necessita de sacrifícios, e assim como ele, seus
filhos também fariam sua parte, fosse aqui ou em seu lar, sua pátria.
O
homem subiu à palhoça e suspirou, como que sentindo o fardo que teria
de carregar, porém após alguns segundos, como por milagre, pensou, já
não havia mais cansaço ou pesar. Piscou repetidas vezes e começou a
falar, e quando falou, a voz se inflamou e soou com ardor e convicção,
com fé e decisão, o raio e o trovão.
No
entanto, ele próprio não as ouvia. Seus pensamentos se achavam em outro
lugar, bem distante dali. Pensava em seu país, no lar que, em breve,
reencontraria.
Todavia,
não seria simplesmente uma volta para casa, um retorno ao passado.
Seria um novo começo e não voltaria sozinho. A luz e a palavra
retornariam com ele.
O raio e o trovão.
Continua...
Nenhum comentário:
Postar um comentário