SÃO PAULO, quando (ainda) era da garôa…
Eu era menina, ainda trabalhava nos lugares de jogador lá do centro.
Limpava as latrinas, servia bebida pros perdidos e pros desandados da
vida. Depois tinha que voltar rápido na noite pro casebre onde morava
com meus irmãos, o papai e a mamãe. Dava medo andar no vale do centro de
madrugada, por que lá era lugar de coisa ruim e de sortilégio. Saía do
botequim, andava no meio dos prédios escuros, descia a ladeira e tinha
que subir uma escadaria de mármore para sair do outro lado do vale.
Valia-me da minha fé e dos meus santos.
Lembro que tinha um flautista que tocava no final da escadaria, muito
tempo atrás. Tempo de garoa, quando o vale era escuro e lugar de coisa
ruim como falava o caboclo matuto. Tocava sua flauta, tocava triste, mas
tocava bonito e muitos daqui e de lá vinham ouvir sua música. Vinham as
moças-dama que não eram prendadas, gente sabida do centro e até do
Brás. Ele tocava de noite, meia noite, hora de ronda e hora de magia da
última sexta-feira do mês.
Ele descia a escadaria de terno branco, lírio em flor. Vinha quando
já era noite, noite bonita. E embaixo dos arcos, tocava para quem
quisesse ouvir. Os meninos da rua, que vadiavam por ali e dormiam em
qualquer canto que fosse canto, falavam que seus olhos eram cor da
prata. Cor de lua cheia. Seu rosto ninguém via não, era como lua negra,
lua escura. Era o que falavam quando a gente servia a sobra das comidas
para ele no beco dos fundos do botequim.
Eu via gente bonita que corria dos quatro cantos para ouvir o
flautista da escadaria tocar. Cães silenciavam seus berros e vinham ali
pastorear. Os gatos vinham da kalunga menor, do meio da consolação
atraídos pela melodia. Ficavam ali, deitados no mármore ouvindo. Tinha
um gato preto, grande e gordo, que ficava ali sentado na estátua de
ferro, tomando conta de todos, só na vigília. Eu saudava sua força,
sabe! Parecia chefe de todos os gatos!
Naquela madrugada só veio uma moça, bonita e de escarlate, ver o
flautista tocar. Era faceira, o escarlate de seu vestido parecia
ruborosa rosa de cruzeiro já em flor. Pele marmórea que parecia deusa de
além dos mares e olhar de fogo, escondido sobre o cacheado negro dos
cabelos.
Terminado o tocador, ela o chamou. Baixou ventania forte na escadaria
que apagou os tocheiros. Os meninos correram que nem os cães na noite.
Uns eram cãezinhos espertos e foram respeitadores. No breu só ouvi um
guinchado pavoroso: Issiiiiisssssssssss… Isssssssiiiiiiissssssssss… E
som de vigorosas asas negras encouradas bateram e bateram, abanando toda
poeira, todos os males, todo chororô…
Quando passou a confusão e eu acordei só vi os gatos seguindo o gato
preto de volta pra Kalunga menor da Consolação. Nunca mais vi flautista
lá e nem moça faceira de escarlate. Bateram asas e voaram dali, voltaram
pra banda de lá. Noite de última sexta-feira do mês, quando passo lá,
acendo vela preta e olho para copeira das árvores. Dali do breu, sinto
que sou olhada de volta, então sei que está tudo em paz.
Uma noite uns rapazes ricos e sabidos, todos embriagados tentaram me
pegar lá perto da escadaria, quando eu ia de volta pro casebre da minha
família. Eles queriam fazer malvadeza com eu. Eles me seguraram e me
tiraram do chão…As copas das árvores perto da escadaria balançaram
forte. Daí veio um guinchado pavoroso, coisa de morto, coisa do lado de
lá… e eu cai no chão.
Quando acordei era de manhã cedo, seu delegado tava lá, todo de preto
com todo seus policiais, só vi a carroça com os corpos dos rapazes
estraçalhados, tudo sem cabeça e os corpo aberto. Os homem sabido
falavam que os corpo tava tudo sem sangue e as cabeça tavam tudo
amarrada nos galhos das árvores. Delegado perguntou seu eu sabia de
algo, e falei que não sabia de nada e me mandei. Só vi as pétalas de
rosa vermelha no final da escadaria.
Vez por outra na madrugada da última sexta-feira, gente que é sabida e
gente que não é, passa lá e também acende vela preta e vermelha lá na
escadaria. Uns que podem mais deixam vinho do bom lá. As moças perdidas
deixam rosa vermelha e badulaques delas nos cantinho dos degraus perto
das velas. Todos eles fazem conversador lá, falam baixinho e
cochicham…Uns até chamam de “compadre” quando falam…Eu só sei que acendo
minha vela, faço meu agradecedor e subo a escadaria logo. Ali é lugar
de povo que sai voando na lua cheia e faz o que a gente não faz aqui
não. Lá longe ouço os cães vadios e os meninos correndo junto no breu do
vale. E tem o “Seu gato preto” que fica lá convidando e recebendo as
prendas, deitado, esparramado no mármore da mureta enluarada…
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário