A lâmina reluzente desligou para cima e para baixo aperfeiçoando o fio de corte no atrito com o amolador de facas, a chamada chaira.
O ruído provocado pelo contato entre aqueles utensílios era como música
suave para seus ouvidos, melhor que qualquer composição de Mozart ou
Beethoven.
Com
calma e experiência adquirida em vários anos, passou levemente o
polegar sobre o fio para avaliar o corte. Perfeito. Depositando a faca
de quase quarenta centímetros de comprimento, incluindo o cabo de
madeira, sobre a sua bancada de trabalho, apanhou o cutelo, examinando,
também, o corte. Ruim, concluiu. Caminhou até o cubículo nos fundos,
onde uma esmerilhadeira encontrava-se instalada e se pôs a amolar o
“pequeno machado”, como gostava de chamá-lo. Não demorou muito para que o
corte ficasse perfeito e ele voltasse para sua bancada de trabalho.
Examinou seus demais utensílios, partes integrantes de sua pequena
coleção. Eram facas e facões de diversos tamanhos, cutelos, machados e chairas
caprichosamente mantidos em excelentes condições de uso. Conferiu pela
última vez, sorrindo satisfeito. Tinha terminado o preparo de suas
ferramentas e, agora, chegara a hora de testar-lhes a eficiência.
Seus
olhos se desviaram das lâminas reluzentes para uma bancada próxima onde
uma “peça” fria e sem vida o aguardava, cuidadosamente inerte sobre a
gélida mesa. Aproximou-se e, com habilidade, manuseou a afiada lâmina,
descrevendo movimentos precisos e perfeitos. Sem oferecer significativa
resistência, as camadas de tecido foram se separando, enquanto o líquido
rubro espalhava-se, escurecendo ao contato com o ar. Deslizando o
instrumento cortante sobre a barriga, provocou um corte mais profundo e,
separando as partes com as mãos, deixou as entranhas à mostra.
Cuidadosamente,
ele retirou cada um dos órgãos, fígado, rins, estômago, pulmões,
depositando-os dentro de recipientes de plástico, brancos,
caprichosamente arrumados sobre uma bancada adjacente. Terminada esta
etapa, voltou-se para a peça, olhando-a como um todo, analisando, de
forma estratégica, qual o próximo passo. Chegou à conclusão que teria
que começar a esquartejá-la, dividi-la em partes menores. A região das
costelas e os ossos maiores iriam dar-lhe mais trabalho.
Examinando
seus instrumentos, apanhou o cutelo e, juntamente com uma faca maior,
começou a trabalhar no desmembramento. Golpeando as juntas com o
“pequeno machado”, dividiu-os em partes menores até sobrar apenas a
parte central da peça e suas malditas costelas.
Depositou
as partes já destrinchadas nos recipientes que ainda estavam vazios,
restando, sobre a bancada de trabalho, um pedaço do “pernil”. Olhou em
volta, procurando uma vasilha que o pudesse guardar, quando ouviu o som
da campainha tocar.
“Quem será?”, pensou, ”Ainda falta quase uma hora pra abrir o estabelecimento!”
Retirando
as luvas cirúrgicas que usava, manchadas de sangue, juntamente com o
avental de açougueiro, dirigiu-se até a parte da frente, contornando o
balcão refrigerado e abriu a porta de metal.
–
Bom dia, Seu Nelson! – disse a velha senhora com um largo sorriso nos
lábios – Sei que o senhor ainda não abriu, mas será que não poderia me
fazer um pequeno favor?
– Claro, Dona Anna! O que a senhora precisa!
–
Vamos fazer uma pequena comemoração lá no retiro e o pessoal quer que
eu faça aquele meu ensopado. Então vim ver se o senhor não podia me
vender um pouco daquela carne do outro dia. Ela é bem macia e é perfeita
pro ensopado!
–
Sem problema, Dona Anna! Eu estava agora pouco limpando uma peça
daquela carne! – disse o açougueiro lembrando-se do “pernil” sobre a
bancada.
– Obrigado, Seu Nelson!
– É um prazer! A propósito, a senhora tem notícia do paradeiro da Clotilde?
A
velha senhora esboçou um sorriso malicioso, pois sabia que ele era
gamado pela… como é que diziam os mais jovem? Ah, sim, enfermeira
gostosona do retiro dos velhinhos.
–
Não tem novidade nenhuma, não, seu Nelson! A Clotilde tá desaparecida
há quase quatro dias e tem gente falando que ela já deve tá morta!
– É a vida, dona Anna! – disse o Açougueiro – Mas se a senhora tiver alguma notícia me avise!
– Pode deixar – disse dona Anna dando uma piscadela – Eu sei que o senhor gosta muito dela.
– É verdade! – disse Nelson, fazendo uma pequena pausa – Deixe-me pegar a encomenda da senhora!
Voltando
para dentro do estabelecimento, Nelson retornou, alguns minutos depois,
com o pacote contendo a carne e entregou a velhinha.
– Quanto lhe devo, seu Nelson?
– Nada, não, dona Anna! É um presente!
–
Obrigada! O senhor é muito gentil. Se tiver notícias da Clotilde, eu
aviso! Tenho certeza que ela está viva e bem perto da gente! Até mais!
– Até mais, Dona Anna!
O
açougueiro ainda viu a velhinha se afastar, tomando a direção do retiro
enquanto procurava imaginar o que a velha senhora pensaria se soubesse
que a enfermeira estava bem mais perto do que ela poderia imaginar.
FIM
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