O
sino tocou. Meus olhos abriram-se, espantados. Aguardei. Pois não seria
a primeira vez que nossas crianças, entediadas, desobedeceriam aos mais
velhos para fazer soar o alerta. Mas o metal retiniu outras diversas
vezes. Alguém estava chegando.
Vivemos
ao sul da Cratera da Tortura, aquele local profanado onde a alma do
odiado Rashidi permanece em eterna agonia. Dizem que o grito de seu
momento de morte ainda ecoa do local, quem me dera poder conhecer tal
lugar. Nossa vila está dentro dos limites do que chamam de Vales dos
Horrores e seu nome já foi esquecido há algum tempo. Por ora, é
necessário apenas dizer que estamos no inferno.
O
sino continua a tocar. Não costumamos ver forasteiros. Até mesmo os
ignorantes mantém-se afastados de nossa terra maldita. Por isso meu
espanto ao ver que, três meses depois de ter recebido aquele grupo, mais
alguém se aproxima.
— Benjamim! – minha esposa chama. – Um cavaleiro se aproxima!
De
joelhos para a grande árvore, no centro de nossa vila, eu termino
minhas preces e me levanto. Encaro aquele belo rosto pálido e seu
sorriso de dentes podres, como o de todos na vila.
— Somente um? – pergunto.
— Sim. Lionel foi recebê-lo. Ele o guiará até a taverna e lhe dará água e comida.
Eu abraço minha esposa e beijo-lhe a testa. Ela está feliz. Sem mais palavras rumo para o local em que encontrarei o cavaleiro.
* * *
Finalmente
uma vila. Após dias andando, sem água ou comida, finalmente encontro
sinal de vida. Os deuses não me pouparam durante a busca pelo meu filho.
Aquele sonhador, que buscava por aventuras, decidiu ser herói nestes
vales amaldiçoados. Louco. Nem eu me arriscaria a vir aqui sem um motivo
forte. Todos sabem que a morte espreita em cada canto. Que o sol é o
único vigia de seu sono e toda noite, sem exceção, os demônios vêm a
esta terra. O solo negro torna-se viscoso e uma névoa fedida emana do
solo assim que a luz dourada some no horizonte. A insanidade passa a
rodear-nos, ludibriando nossas mentes com gritos atormentados e imagens
horrendas. O próprio inferno.
—
Senhor! – grita um homem magricela, vindo da aldeia. Ele pára no meio
do caminho, como se temesse avançar mais. Dois outros o acompanham,
olhando-me com confiança. – Venha rápido, não é seguro onde está!
Olho
para os lados e nada vejo, exceto pelas montanhas que nos cercam. Mesmo
assim um calafrio percorre minha espinha. Eu acelero o passo e logo
estou de frente para eles. Pessoas maltrapilhas de dentes podres.
— Na cidade, existe algum lugar onde eu possa descansar? – pergunto tentando não demonstrar minha exaustão.
—
Claro. Mas precisamos sair logo daqui. Vê as pedras? – diz ele,
apontando para algumas rochas esparsas cercando a vila. – Não é bom
ficar depois delas.
Não
posso confiar em ninguém, mas eles estão desarmados. Decido seguí-los,
deixando o local que julgavam ser perigoso. A vila possui um ar pesado e
o cheiro do esgoto a céu aberto é forte. Vários habitantes me observam
curiosos. Alguns esboçam um sorriso de esperança ao me ver. Na lateral
de toda casa reside uma horta mal cuidada. Na porta, mães com não menos
que meia dúzia de filhos me estudam. Entre as mulheres, várias estavam
grávidas. Vejo poucos que aparentam mais que trinta invernos. Curvei a
cabeça, envergonhado com a miséria e sofrimento daquele povo. Como
podiam viver assim? Como a peste ainda não viera para levá-los de volta
aos deuses?
* * *
Quando
entrei na taverna o reconheci de imediato. Apenas de olhar para o rosto
do cavaleiro, já sabia o que queria, de onde viera e, até mesmo, seu
sobrenome. Ele encarava com nojo a caneca com nossa água suja, quase
negra. Sem opção, o forasteiro fez uma prece e a bebeu.
— Lamento por nossa água Sir… – aproximei-me estendendo a mão.
— Guerald D`Angelis. – respondeu secamente, ignorando meu gesto.
—
Isto confirma minha desconfiança… – comentei, sentando-me ao seu lado. –
Seu rosto se parece com o de um viajante que esteve aqui, com amigos
aventureiros, há pouco menos de três meses.
—
Louis esteve aqui? – seus olhos encheram-se de esperança. Seu rosto
tomou cor e ele quase esboçou um sorriso. Lamentei ser o algoz de sua
alma.
— Louis está morto… Imagino que fosse seu filho.
— Morto?
— Sim, ele e dois dos amigos.
— Pelos deuses… Eu me recuso a acreditar…
— Lamento…
— Não pode ser! Ele não pode estar morto! Eu jurei à minha esposa que o levaria para casa.
—
Vou deixá-lo só por enquanto. Os ossos dele estão na Casa dos Ossos,
nosso cemitério. Se quiser, Lionel poderá levá-lo até lá. Os itens que
ele portava também estão disponíveis para que você os leve. – anunciei
dando-lhe as costas. Eu via as emoções oscilarem nos olhos vermelhos
daquele homem. Tristeza, medo, ódio e vergonha. A qualquer momento ele
poderia sacar a espada e enlouquecer, levando-nos a um triste fim.
—
Além das pedras um demônio assassino espreita. Invisível, ele drena
nossas forças deixando-nos indefesos, então nos mata para devorar nossos
corações. Foi assim com ele e seus dois amigos.
—
Eu sou Benjamin, o líder desta vila. Nós vivemos aqui, imersos em uma
angústia eterna. Nós não podemos sair deste lugar, mas você sim. Quando
estiver pronto para partir, me procure.
— Eu quero ver os restos de meu filho! – afirmou ele entre lágrimas e baba enegrecida pela nossa água suja.
— Lionel o levará até ele.
* * *
Eu
sigo o homem magricela pela cidade. Tento manter a calma, eles podem
estar enganados. Meu filho não pode estar morto. No caminho, passamos ao
lado de uma estranha e tenebrosa árvore. Gigantesca, seus galhos secos
ramificam-se em várias direções, encerrando-se em frutos escuros, do
tamanho de maçãs. A grossa casca, que envolve seu tronco é mofada e sua
seiva parece escorrer constantemente. Em sua base, uma cavidade revela
um buraco sobre suas raízes. Hipnotizado, vejo uma mãe colher aquele
fruto e dar a seu filho desnutrido, de barriga saliente.
O
barulho de chaves retinindo me devolve à realidade. Meu coração se
aperta ao perceber que minhas duvidas serão sanadas. A Casa dos Ossos:
nada mais que uma construção simples, como qualquer das outras moradias.
Suas janelas estão seladas com prego e madeira. A fechadura é antiga,
assim como a chave e, quando a tranca estala, tenho a impressão que foi a
chave que partiu. Um cheiro fraco de podridão cerca o lugar, mas quando
o ranger das dobradiças enferrujadas se inicia, o verdadeiro odor da
morte se manifesta. Eu entendo o significado daquele nome. Empilhados em
estantes, como livros em uma biblioteca cheia, descansam os restos
mortais de centenas de pessoas. Vários ossos estão limpos, enquanto
outros servem de alimento para ratos de olhos vermelhos.
Passo
os olhos naquela sala horrenda para encontrar, jogada em um canto
qualquer, a armadura e espada de meu filho. A ânsia vem e, tonto, caio
de quatro para vomitar a água suja que ingeri.
—
Não temos espaço para um cemitério… – justifica Lionel com seus olhos
profundos encarando-me. – E muitos são os jovens que tentam fugir deste
lugar e morrem.
Eu
arrasto-me, entrando no local. Nenhum pai deveria presenciar a morte de
um filho. Vou até a armadura e a puxo, espalhando os ossos dentro dela.
—
Desculpe… – imploro, tentando juntar o que restou. Seguro seu crânio
sem mandíbula e o encaro, ajoelhado. Pelos deuses, eu vejo seu rosto
ainda infante naquele osso sem vida. De seu nascimento ao primeiro amor,
do dia em que se tornou cavaleiro ao momento em que participou de seu
primeiro combate. Eu o abraço, sem preocupar-me com minha aparência ou
honra, e choro como nunca imaginei que faria.
* * *
Eu
ouço o lamento do cavaleiro. Toda a vila houve. Cada um de nós sofre
junto com ele. Por horas, permaneço à volta de meus nove filhos,
tentando arrumar uma explicação para o inferno em que vivemos. Lionel
abre a porta com olhos renovados e me encara ansioso.
— Ele enfrentará o demônio! – diz ele, mostrando seus dentes podres.
Levanto-me
de imediato e o sigo. Passamos antes no armazém para pegar a grande
corda e então rumamos para os limites da cidade. Próximo às pedras, o
forasteiro ora para seus deuses. Chego no exato momento em que ele
termina as preces. Paro de frente para ele e encaro seu olhar decidido.
— Vários já tentaram. Ninguém jamais conseguiu. – digo sem delongas.
— Eu vingarei meu filho!
— O demônio é invisível… Ele sugará sua energia e você sequer poderá lutar.
—
Rauny, minha deusa irá me proteger. Hoje a maldição de seu povo se
encerra. – ele argumenta. Um verdadeiro herói. Sua dor me faz doer à
alma.
— Então me deixe amarrar esta corda em você. Caso caia, nós o puxaremos de volta.
— Faça! Mas orem para que eu não tombe.
Eu mesmo faço a amarra em sua cintura de aço. Três nós apertados para que não aja a chance de o perdermos.
— Eu queria que sua vontade fosse o suficiente para libertar-nos.
— A vontade dos homens faz o mundo girar, aldeão. – diz ele, dando o primeiro passo e desembainhando sua arma.
Ele
se afasta lentamente. Encarando a escuridão. Passo após passo,
esperando ansioso pelo inimigo que não vem. Seu corpo então arqueia. A
espada vai ao chão para permitir que suas mãos o apóiem. Nós suspiramos.
A menos de dez metros, o cavaleiro tenta resistir inutilmente. Seu
corpo tomba sem forças.
— Puxem! – Grito para os homens fracos atrás de mim. Juntos, arrastamos o pesado homem para dentro da proteção.
— Você está vivo? – Pergunto.
Seus
olhos apenas me encaram. Lágrimas impotentes escorrem de um rosto já
sem honra. Agora ele sabe: É impossível derrotar o demônio.
* * *
—
Eu trouxe a espada de seu filho, senhor. – diz um jovem, aproximando-se
com a lâmina nas mãos. O olhar, ainda com esperança, mesmo após minha
derrota vergonhosa.
—
Obrigado… – digo, sem querer desmanchar aquela expressão. Não tenho o
direito de tirar sua esperança; única coisa que este povo simples ainda
tem. Mas sei que nada posso fazer para ajudá-los.
—
Lamento. – a voz de Benjamin sussurra ao meu lado. “Lamento”, já perdi a
conta de quantas vezes ele me disse isto. Rauny, dama protetora, meu
espírito está derrotado.
—
Eu sei como você se sente. Já perdi quatro filhos para este demônio. A
dor é profunda e a alma jamais se recupera deste ferimento. Todas as
famílias desta vila já perderam alguém para esta maldição.
— Vocês deveriam construir uma cerca. Não podem contar com o juízo das crianças para não atravessar as pedras. – digo desolado.
— Com que madeira? – O homem ri. — Com nossas casas?
— E a grande árvore?
— Ela é sagrada. Mesmo que não fosse, não cobriria metade da extensão.
— Sagrada? Aquela aberr… – minha boca se cala antes que eu diga besteiras. O homem arregala seus olhos. Ele hesita.
—
Faz três dias que você está conosco, cavaleiro. Meu povo não pode sair
daqui. Por gerações estas terras foram nossas, até mesmo antes da vinda
de Rashidi. Mas você pode.
— Tal demônio irá se distrair, então partirei.
—
Não, ele agora sabe de você. Ele provou de sua essência e vai querer
encerrar seu banquete. Mas ainda existe uma maneira. – ele se aproxima. –
Eu contarei a você se jurar que trará ajuda para nós!
— Eu trarei cavaleiros da Ordem da Prata, especialistas em demônios. Irei buscá-los em Crown, se necessário. Tudo para vingar meu filho! Tudo para acabar com o sofrimento que vejo.
—
Certo. – diz ele, quase sussurrando. – A árvore esconde um túnel que
leva a um quilômetro da vila. Ele está repleto de mortos-vivos, se
derrotá-los, estará livre.
— Um túnel?
— Sim.
— Então vocês poderiam vir comigo.
—
E quem nos protegeria quando a noite caísse sobre os Vales dos
Horrores? Quando a névoa fétida fosse expelida do solo e os mortos e
demônios viessem beber da vida humana? Você poderia fazê-lo?
— Não. – o homem tinha razão. Não havia guerreiros entre eles. – Eu partirei então, e trarei reforço.
— E eu orarei por sua alma. – diz ele abraçando-me com força. Um gesto inesperado.
* * *
O
Cavaleiro é valente. Ele abrevia seu descanso e pega suprimentos
conosco para partir. Mesmo sob uma careta, ele aceita levar os frutos de
nossa árvore. A vila toda vem ao centro para despedir-se. Várias das
crianças sequer sabem o que acontece. Já os mais velhos, observam
aliviados o cavaleiro arrastar-se pela fenda aos pés da árvore.
— Boa jornada, Sir Guerald D´Angelis. – digo ajoelhando-me. Toda a vila, até os menores repetem meu gesto.
Então
o tronco da árvore parece ceder e ela rebaixa alguns centímetros,
levantando poeira à sua volta. A madeira começa a contorcer-se,
derrubando frutos. Os galhos chocando-se uns com os outros e os gritos
desesperados do cavaleiro ecoam em meio ao nosso silêncio. A seiva da
árvore sagrada torna-se vermelha mais uma vez. Está acabado. Em dois
dias, restarão apenas o metal e seus ossos. Eu apenas lamento e desejo
que ele encontre seu filho ao chegar no reino de Amupherus, a deusa dos
mortos.
Pergunto-me
até quando nossas gerações terão que viver assim. A árvore nos protege
dos perigos além das pedras. Mas a água, contaminada pelas raízes
profundas de nossa guardiã, também nos impede de deixar esta prisão
enfraquecendo-nos assim que ultrapassamos os limites da vila. Seu fruto é
a única coisa que nos alimenta verdadeiramente. Nós tentamos cultivar
hortas, mas tudo é podre e faz mal. Para que ela dê os frutos e não
morramos de fome, a árvore sagrada pede seu alimento: Nossa carne e
sangue. Uma vez a cada dois meses o sacrifício precisa ser feito.
Até
quando enganarei os viajantes com a história do demônio para dar dois
meses a mais a um de nossos filhos? Até quando teremos que criar vidas
para serem sacrificadas? Os que vieram antes de mim e foram devorados
pela nossa guardiã jamais souberam da resposta. E creio, eu também não
saberei.
A mim, resta apenas conformar-me. Este é o inferno, e nós estamos condenados a viver nele.
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