1
Findar dos Dias, dos Tempos, da Era dos Homens ou do Mundo…
Para
mim, o que realmente importava não era o nome dado, e sim, o próprio
conceito da expressão “Findar”. Um conceito tão antigo quanto o próprio
mundo e que, desde as mais remotas eras, até as mais recentes, se fazia
presente em praticamente todas as culturas da Terra, no que, cada qual, e
de comum acordo com as suas tradições, o registrava de alguma forma.
Sumérios, nórdicos, gregos, celtas, romanos, maias, egípcios e demais
povos da antiguidade sempre o evidenciaram em suas escrituras e livros
sagrados. Um conceito tão antigo quanto o próprio mundo, temido e
estudado a fundo pelos exegetas, teólogos e atuais adeptos das três
maiores e mais influentes correntes religiosas da Humanidade:
Cristianismo, Judaísmo e Islamismo. Um conceito tão antigo quanto o
próprio mundo, todavia, que ninguém, repito, ninguém, em verdade,
considerava ser capaz de transformar-se, nalgum dia, em fato verídico e
consumado. Eu mesmo, embora soubesse isso tudo sobre “ele” e, não
obstante, neste exato momento, o vivenciasse na própria pele, ainda
recusava-me a acreditar que a dantesca imagem diante de meus olhos
atônitos, esbugalhados pelo terror, fosse, tão somente, o desencadear do
prenunciado Armagedon, ou seja, o último e derradeiro ato do Apocalipse
Bíblico.
De
repente, dou-me por conta da realidade e estremeço. Para todos os lados
a que dirijo o olhar, encontro sangue, destruição e morte. Milhões de
corpos sem vida e outro tanto de mutilados. Dor e desespero. Agonia,
medo e desesperança. O mundo à minha volta, céus e terras, ardendo em
chamas e transformado num único e gigantesco campo de batalha. Dois
colossais exércitos, frente a frente e prestes a se enfrentarem. De um
lado, eu e o pouco que resta da quase exterminada raça humana, alguns
poucos milhões de indivíduos, juntamente com dezenas de milhares de
Anjos que, apesar de suas imponentes e majestosas asas multicoloridas,
seus impressionantes arcos e escudos, compridas lanças, ameaçadoras
espadas de lâminas azuladas e reluzentes armaduras e elmos, nem sombra
fazem ante o descomunal exército das trevas, composto por vários bilhões
de demônios, com ou sem asas, porém, fortemente armados, sedentos de
sangue e sob o comando de ninguém menos do que Lúcifer, o Senhor de
Todos os Demônios, em pessoa.
Ao
vislumbrá-lo entre os seus principais generais e à frente das macabras
tropas infernais, um arrepio percorre-me as entranhas. Engulo em seco,
porém, permaneço firme em minha posição, sem vacilar. Afinal de contas,
eu sempre soube que este trágico e inevitável dia chegaria. Na verdade,
todos nós: homens, mulheres e anjos sempre soubemos, todavia, nunca
acreditamos realmente.
Percebo
um filete de suor escorrendo por minha testa e minhas mãos começam a
tremer. Medo e consternação invadem a minha alma. Sinto medo da morte e
consternação por não poder evitá-la. Sinto medo do futuro e consternação
por não poder alterá-lo. Olho para os lados e vejo os
meus companheiros de armas, tão apavorados e temerosos quanto eu.
Introspectos e absortos em seus próprios dilemas, como eu. Olhares
perdidos na distância e corpos ensangüentados, como os meus. Corações
destroçados e almas aflitas. Sonhos e esperanças dilacerados pelos véus
da incerteza e do medo. Inspiro profundamente, enquanto tento me armar
de coragem e determinação. Mas, como todos ali, homens, anjos e
demônios, também eu estou cônscio de que posso perecer nos próximos
minutos, de modo que só me resta pedir, ou melhor, implorar à Dama da
Foice que me abrace de forma rápida e indolor.
Um
repentino soar de trombetas e meus dedos se apertam em torno do cabo de
minha espada, pois sei que naquela lâmina azulada repousa as últimas
esperanças de minha raça.
Um
segundo soar de trombetas e ambos os exércitos lançam-se à batalha. São
os destinos da humanidade e do próprio planeta que começam a ser
decidido em um sangrento, cruel e macabro embate, do qual, seguramente,
apenas uns poucos sobreviverão e cujo exército vencedor deterá como
recompensa final, domínio total sobre a Terra.
Enquanto
corro em direção ao inimigo – espada empunhada qual mortífera extensão
de meu próprio ser, adrenalina ao máximo e coração em disparada – sutis
lembranças de outros tempos e de outra vida ecoam em minha mente. E,
quando enfim percebo, estou de volta ao momento em que tudo começou…
2
Doze meses antes da batalha: o primeiro ato do Apocalipse…
Um
dia como outro qualquer. Acordo cedo, tomo café e vou trabalhar. Ao fim
da tarde, encerro o meu expediente e deixo a escola técnica onde
leciono. Retorno para casa, tomo um banho e saio para beber com alguns
amigos.
Após
a noitada, volto para casa, como alguma coisa e resolvo assistir um
filme na televisão. O filme vai bem, até ser subitamente interrompido e
substituído por uma alarmante e terrível notícia: Londres encontra-se
sob intenso ataque terrorista, está sendo totalmente arrasada e
literalmente arde em chamas!
No
princípio, eu não acredito e até esboço um tímido sorriso. Entrementes,
diante das cenas apocalípticas que se desenrolam a seguir, vejo-me
obrigado a aceitar tal infortúnio como evento real e consumado, no que
fico apavorado e aturdido ante as imagens de destruição e desolação. A
notícia rapidamente se espalha e a balbúrdia toma conta das ruas.
Pessoas correm assustadas de um lado para o outro. Outras recolhem as
crianças para dentro das casas. Buzinas e sirenes. Caos e confusão.
Daquele
momento em diante, não desgrudo mais da TV, ansioso por maiores
detalhes e novas informações. Fala-se em retaliação e há até quem afirme
que aquilo se transformará no início da Terceira Guerra Mundial. Então,
fico sabendo que além da capital inglesa, a nação da Romênia inteira
encontra-se incomunicável há mais de uma semana. Um misto de
preocupação, nervosismo e aflição apossa-se de meu ser.
Num
determinado momento, a imagem da TV embaralha e quando retorna, eu
quase caio do sofá. Ali, diante de mim, encontra-se, em carne e osso e
como que saída das entranhas do Inferno, sinistra criatura, dotada de
enormes e assustadores pares de asas. O ser começa a falar e eu quase
não ouço o que diz, assombrado que estou. No final, lembro apenas de
tê-lo escutado se apresentar como sendo Lúcifer e, ato contínuo, exigir a
completa e total rendição global, sob pena de aniquilamento às nações
que o desafiarem, insurgindo-se contra suas determinações.
Fico ainda mais nervoso. Começo a transpirar e tremer descontroladamente.
Não
durmo naquela noite. Mal afasto-me da frente da TV, refém do medo e da
curiosidade. A madrugada vem e, de súbito, animo-me ao escutar sobre uma
grande ofensiva militar comandada pela ONU que já está em andamento
contra Lúcifer e o seu amaldiçoado exército das trevas. Mas, a alegria
dura pouco, pois a investida se transforma no maior fiasco militar da
História, onde vários milhares de Boinas Azuis perdem suas vidas sem que
ao menos um demônio seja sequer ferido.
Lúcifer
ressurge e anuncia, a título de retaliação, a total destruição de cinco
das maiores capitais e metrópoles européias, conjuntamente com o
extermínio de suas populações. Sem conseguir respirar direito, devido ao
pânico, eu assisto, perplexo, à concretização da anunciada retaliação,
no que as cidades de Roma, Paris, Moscou, Berlim e Madrid
sistematicamente desaparecem do mapa, consumidas pelo fogo. Então, sem
nenhum aviso, dou um novo salto no tempo…
3
Seis meses antes da batalha: o segundo ato do Apocalipse…
Encontro-me
agora em uma gigantesca base militar secreta, escavada sob as inóspitas
geleiras da Antártida, ao lado de milhões de outros humanos, recrutados
ao redor do planeta, pelos Anjos – seres que, paralelamente aos
demônios, irromperam do nada em nosso mundo e, quando já não
acalentávamos mais nenhuma esperança e tudo parecia perdido,
prenunciaram-nos a salvação, não divina ou milagrosa, mas pelas armas e
pela guerra – onde me submeto há mais de ano, a rigoroso e intenso
treinamento. E enquanto aprendo a manejar as armas – espadas, lanças,
punhais, machados e arcos com suas setas de gélidas lâminas azuladas
que, segundo os nossos instrutores alados, seriam as únicas capazes de
abreviarem as vidas de nossos infernais inimigos, uma vez que armas de
natureza humana são totalmente inofensivas a estes – vou acompanhando a
evolução dos acontecimentos.
De
lá, assisto impotente e inconformado ao desmantelamento da antiga ordem
mundial, assim como à dura e cruel flagelação provocada pelos
sanguinários ataques dos demônios à Ásia, à África e à Oceania, cuja
maioria das nações, em questão de horas, sucumbe, ao mesmo tempo em que
suas populações são aniquiladas. Assisto atônito à transformação da
Europa central em gigantesco campo de concentração e extermínio
continental, para onde passam a ser levados e posteriormente executados
todos os humanos capturados nos demais continentes.
O
treinamento prossegue até que finalmente chega o dia em que as legiões
de Lúcifer ameaçam atacar as Américas, reduto dos últimos humanos livres
da Terra. Diante dessa nova ameaça, os anjos decidem enfrentá-los em
seu próprio território, no que imediatamente atravessamos os oceanos
rumo à Europa, a bordo da maior esquadra naval da História. Lá chegando,
desembarcamos e marchamos diretamente para o inimigo…
4
De volta ao presente: o último ato do Apocalipse…
Anjos, demônios e homens dividem o mesmo fardo e o mesmo Inferno.
Anjos, demônios e homens transformam-se em Emissários da Morte.
Anjos, demônios e homens lutam e matam.
Anjos, demônios e homens sangram e morrem.
Em
meio aos incessantes brados de guerra, muita confusão, cotoveladas,
chutes e socos. Os violentos entrechoques das espadas produzem faíscas,
chuvas de flechas e de lanças perfuram corpos, golpes certeiros decepam
membros e dão vazão a um monstruoso rio de sangue, no que ambos os
exércitos se amontoam na mais funesta e amaldiçoada das batalhas.
Para
enfrentar os cruéis demônios, também me transformo em uma espécie de
demônio. Com o coração e a alma na ponta da espada, eu corro, grito,
chuto, corto, rasgo e mato. Sangro e faço muitos de meus oponentes
sangrarem. Agora, o medo e a consternação de alguns minutos atrás, já
não existem mais. Cederam lugar à raiva, ao ódio e à fúria, à insaciável
sede de sangue e à incontrolável vontade de matar, um desejo sem par de
provocar dor e ceifar vidas. De repente, me vejo sozinho e cercado pelo
inimigo. Os meus companheiros, ou estão mortos, ou muito ocupados para
perceberem a delicada situação em que eu me encontro. Os demônios formam
um círculo ao meu redor, no que giro a espada em volta da cabeça e
logro mantê-los afastados por um tempo. Mas, eis que piso em falso, no
corpo ensangüentado de um colega morto e desabo sobre aquele macabro
lago escarlate. Instantaneamente, a turba demoníaca lança-se enfurecida
qual enxame de abelhas, sobre mim. Tento defender-me de seus golpes, mas
suas espadas e lanças rasgam a minha carne e órgãos como se fossem
meros pedaços de papel…
5
Acordo
sobressaltado e encharcado de suor. Minhas mãos e pernas tremem em
franca convulsão nervosa, enquanto o coração parece querer saltar pela
boca. Sento na cama e procuro me acalmar. E, embora eu esteja cônscio
tratar-se apenas de um sonho, extremamente realista, mas, ainda assim,
um sonho, ponho-me a rezar. Para quem ou para o quê, eu não sei. Mas,
por algum tempo, não sei precisar o quanto, permaneço assim: sentado de
olhos fechados, convertendo toda aflição e agonia que sinto em
acalentadoras orações, pedindo sempre a mesma coisa, ainda que saiba de
antemão que o meu esforço de nada adiantará e jamais serei atendido em
minhas preces. Agora é tarde demais e não há mais como voltar atrás.
Subitamente, pesada mão apóia-se em meu ombro e afetada voz retira-me de tal estado de contemplação espiritual.
–
Está na hora! Precisamos ir, pois a batalha já vai começar… –
comunica-me a majestosa figura angelical com a qual divido a barraca de
campanha.
Levanto.
Visto a armadura, apanho a espada e o escudo e me dirijo para a saída
da tenda, consciente de que o cruel destino não me permitiria retornar
vivo daquele último e crucial embate a ser travado na derradeira Guerra
dos Anjos…
O último e derradeiro ato do Apocalipse!
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