Certo dia, Olorum, o Deus Supremo, resolveu que era chegado o momento de criar algo diferente de tudo que já tinha feito e teve uma idéia magnífica. Iria criar um ser que fosse igual aos deuses, só que mortal. Todavia, como era o Deus Supremo, não se dignava a exercer tarefas manuais. Então, para isso, mandou chamar Oxalá, o Deus Criador. Apressado, Oxalá correu a apresentar-se diante de Olorum, curioso em saber o que ele queria.
– Oxalá, te chamei aqui porque é o deus certo para realizar o desejo que tive! – disse o Deus Supremo.
Em respeito, Oxalá moveu a cabeça afirmativamente, sem, no entanto, exprimir uma palavra sequer.
– Você é o mais criativo dos deuses! – disse Olorum, enchendo o ego do Deus Criador – Por isso quero que crie o homem!
– Homem? – perguntou Oxalá, sem ter qualquer noção do que Olorum estava dizendo – O que vem a ser isso, Grande Deus?
– Um ser quase igual a nós, só que mortal!
– Um deus mortal?
– Quase isso!
Oxalá enrolou-se em seu manto branco e começou a pensar, enquanto coçava a cabeça.
“Eis
aí um belo desafio: Criar um ser igual aos deuses, mas diferente!”,
ponderou, retornando imediatamente ao seu lugar de trabalho, ainda
confuso e cheio de dúvidas.
– Muito bem, vamos lá! – disse ele ao chegar em seu ateliê – Se o homem dever ser tal como os deuses, o farei todo de ar!
Mas entre dizer e fazer tem uma distância muito grande, até mesmo para Oxalá.
Conforme
trabalhava, as dificuldades foram surgindo e a matéria-prima mostrou-se
arredia, sempre lhe escoando por entre os dedos. Mas Oxalá era um deus
persistente e tanto insistiu que, finalmente, conseguiu modelar o
primeiro ser humano.
– Magnífico! – disse ele, afastando-se um pouco para contemplar o seu trabalho.
Com
a vaidade inata do artista, Oxalá levou sua obra para o sol para que
pudesse melhor admirá-la. Quando os raios do astro-rei vararam a
criatura, dos pé a cabeça, o deus foi obrigado a admitir que não fizera o
homem a contento, pois conforme o ar aquecia, maior ele ficava.
– Transparente demais! Balofo demais!
Mas o verdadeiro defeito revelou-se em seguida. O homem-balão começou a falar e não parava mais.
–
Basta, cabeça-de-vento! – disse Oxalá, farto do falatório da criatura
e, com um simples safanão viu-o explodir e sumir numa fração de segundo.
Um ruído e um fedor foi tudo que restou do primeiro e mal fadado ser
humano.
Voltando ao seu ateliê, o deus partiu para sua segunda tentativa, agora utilizando-se de um elemento líquido.
–
Um ser todo feito de água! – disse ele, a manusear alegremente, dentro
de um grande tanque, uma porção generosa da matéria-prima colhida no
rio.
Mais
uma vez, entretanto, o elemento escolhido mostrou-se também rebelde,
mas nada que sua habilidade e persistência não conseguisse domar.
– Ponto, ei-lo vivo! - disse o deus retirando o homem-água de dentro do tanque.
Eufórico, Oxalá levou a criatura para fora do ateliê a fim de mostrar-lhe as belezas do universo.
– Este é o seu novo lar! – disse o deus, mostrando o mundo como um enfático mestre-de-cerimônias.
Sim,
lá estavam as andorinhas a gorjearem, bem como os graciosos gaviões a
devastarem seus ninhos. Lá estavam os fihotinhos de sagüis a brincarem
alegremente, bem como um leopardo a segurar um dos macaquinhos entre
suas presas! Lá estavam as ovelhas a tomarem sol, bem como o tigre
rajado a espreitá-las! Então, Oxalá observa que a criatura não parece
desfrutar de alegria. Está infeliz.
–
Ora, por que estás assim? – perguntou o deus ao ver brotarem dos olhos
gelatinosos do novo ser uma porção de gotas pequenas como pingentes. Uma
careta de terror e, imediatamente, surge em sua mascara aquática.
–
Mas que medos são esses? – questionou o deus que, alarmado, viu o
homem-água começar a vazar inteiro pelos olhos e pelos orifícios
inferiores.
Oxalá,
então, tentou vedar os vazamentos, mas nada impediu que o homem-lágrima
se liquefizesse inteiro aos seus pés. Uma grande poça d’água foi tudo
que restou do segundo e malfadado ser humano.
Frustrado,
Oxalá volta para sua mesa de trabalho e parte para uma nova tentativa,
agora com pedra. Mas o resultado também não é o esperado.
– Cabeça dura! – disse ele ao ver que era impossível meter-lhe uma única idéia na cabeça.
Nova
tentativa, agora se utilizando da madeira, e novo fracasso. A criatura
revela-se quase tão cabeça dura quanto o de pedra. Além do mais, tinha
uma cara de pau extremamente repulsiva e em menos de um mês, já estava
todo comido pelos cupins.
– Fogo! – bradou, de repente o deus – O próximo será de fogo!
Recolhendo
do sol uma enorme labareda, Oxalá se pôs a trabalhar sobre ela com
grande afinco. Mesmo sofrendo uma porção de queimaduras, o deus acabou
por triunfar.
– Aí está! O homem feito de fogo! – disse, pulando de alegria.
Todavia,
nuvens começaram a se formar por sobre a cabeça do criador e de sua
criatura – a quem o terror começou a deixar amarelada. Antes que Oxalá
tivesse tempo de achar uma solução, desabou uma chuvarada, fazendo o
novo ser humana passar de homem-fogo, para homem-fumaça e de
homem-fumaça para homem-coisa-nenhuma.
Sem mais saber o que fazer, Oxalá se deu por vencido.
– Basta de homens! – gritou o deus, como uma solteirona despeitada.
– Que berreiro e esse? – disse a voz que vinha às suas costas.
Virando-se, Oxalá torceu o nariz ao ver sua ex-esposa aproximar-se, deixando atrás de si um grande rastro de lama.
– O que quer aqui, preta-velha?
–
Preta-velha é a mãe! – disse a austera figura, que não era ninguém
menos do que Nanã Burucu, uma das deusas mais antigas e veneradas do
universo. Habitante das águas, Nanã era a Senhora da Lama que acumulava
no fundo dos rios.
– Vá embora e me deixe em paz! – pediu o deus.
– Não farei isso até que me diga o porque do berreiro!
Oxalá
suspirou. Estava cansado de suas tentativas frustradas. De repente, o
deus vislumbrou a possibilidade de alguma ajuda para solucionar o seu
problema e, nesse instante, o tom de sua voz se acalmou.
– É que não consegui cumprir uma ordem de Olorum, Nanãzinha!
Assumindo
a postura de deusa sábia e benevolente, Nanã resolveu esquecer os modos
rudes de Oxalá e ajudar o ex-companheiro. Depois de escutar-lhe toda a
história, Nanã disse que tinha a solução perfeita para ele.
– Muito, bem! Vou ajudá-lo!
Feliz, Oxalá caiu de joelhos diante da deusa e beijou-lhe os dedos das mãos.
– Pretinha-velha, você ainda é a maior!
– Preta-velha é a mãe! – disse irritada, mas logo acalmou-se – Fique aí que eu já volto!
Dali
a pouco, a deusa retornou com um saco enorme de lodo retirado, e
fartamente adubado, dias antes do fundo do lago. Oxalá ficou olhando,
sem sair do lugar.
– Mexa-se! Não vai ajudar-me? – disse a deusa, ainda mais curvada por causa do peso de sua carga.
Oxalá, como quem desperta, prontamente correu a recolher o saco marrom e gotejante.
– O que faço com isto? – perguntou o deus com um ar de paspalho.
– Coma, idiota! – disse Nanã diante da pergunta que Oxalá fizera e, antes dele responder, acrescentou – Faça o homem!
Ainda indeciso, Oxalá olhou outra vez para o saco, sentindo um cheiro estranho.
– É terra, estúpido! – disse a deusa – Faça logo o que tem que fazer!
Então
Oxalá trabalhou e, para sua surpresa, viu surgir de suas mãos um ser
durável e quase perfeito. Feliz, foi correndo levar sua obra até Olorum
que, com um sopro, injetou-lhe vida e movimento.
De
fato, a nova criatura ficara tão bem feita que logo começou a dar-se
ares de obra-prima da criação, obrigando a Nanã a moderar-lhe o orgulho
com uma desagradável notícia.
– Toma tento, homem-argila, pois assim como vieste do barro, ao barro hás de voltar!
E
foi assim que, segundo algumas más vozes, o homem foi criado de alguma
plantação adubada e que, na casa de Nanã Burucu, podia-se ver um saco de
estrume consumido pela metade.
FIM
¹ Este
conto foi baseado numa lenda africana que conta a criação do homem
pelos Orixás. O autor apenas vez uma versão da referida lenda.
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