quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Pássaro Dourado


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O Administrador.




James Andrade
O PÁSSARO DOURADO

           A luz de um Sol amarelo e tímido reflete na água, tingindo a superfície do mar calmo com um tom opaco de dourado, que vagamente lembra o ouro, mas não “aquele” ouro, o de verdade, puro; a cor do ouro puro é muito diferente, nem se compara, é uma mistura de amarelo e fogo, uma combinação única, que é capaz de nublar a razão de qualquer um que olhe para ela. Não. O ouro refletido nas águas deste pedaço de mar está mais para aquele que se encontra em bijuterias ordinárias, em coisas sem valor, uma mistura patética de amarelo e água. Cor sem paixão, sem viço, sem vida.
            Morta-cor.
            É assim que o homem que olha para as águas como se fitasse o nada se sente. Pueril. Diluído. Quase etéreo como uma gota de tinta em uma quantidade muito grande de água, tanta, que ele se pergunta se ainda restou alguma coisa daquilo do qual ele era feito. Do material original.
            E teme que a resposta seja não.
            Se possível fosse, ele se diria um pouco morto.  Muitas são as vezes em que ele se surpreende forçando a própria memória para não esquecer sua origem, mas é em vão, não fosse aquele que vive ao seu lado, ele certamente já teria se esquecido de quem é. Chrónos[1] é um sádico inclemente.
            “O que se pode esperar de um demente que castrou o próprio pai?! Maldito filho de Gaia” – pensa o homem.
            O som estridente de uma buzina avisa a todos; até mesmo aqueles que não queriam saber; que a balsa chegou ao seu destino, o roncar dos motores, agora trabalhando para frear a embarcação, redobra. Entre solavancos e estrondos da pesada estrutura da balsa se chocando contra o píer de desembarque o homem se levanta da cadeira onde estava sentado e pega sua mochila, mas não tem pressa em sair do lugar onde está. Calmamente ele aguarda que todos os outros passageiros saiam, o que não demora muito, não tem muita gente, a maioria é de estudantes voltando para casa, já é muito tarde, passa das 22h, mesmo assim o Sol continua a brilhar.
            Aqui, tão ao norte, é assim, durante o verão, o Sol não vai embora e no inverno, ele não aparece, o que, na prática, muda muito pouco, aqui é sempre frio. Se bem que nos últimos anos o Sol tem ficado por mais tempo do que antes, e o calor tem aumentado, sensivelmente, culpa das mudanças climáticas, dizem os entendidos. Pode ser. Quem realmente pode saber? Fato é que os verões tem sido mais quentes; o que para o homem não quer dizer nada. Ele não liga.
            Não mais.
            Os passageiros estavam com tanta pressa que se o funcionário não abrisse logo o portão de desembarque eles teriam se pisoteado. O homem olha para as pessoas, apressadas, irritadas, preocupadas em chegar logo a algum lugar e não sente nada.
            E isso o entristece ainda mais.
            Houve tempos em que ele faria questão de ser o primeiro da fila, de ser o primeiro a desembarcar, de ser o primeiro a sair do píer, enfim, de ser o primeiro, não importando no que fosse. O prêmio pouco importava. A chama da competição é que o animava. Ele até lutaria por isso. Na verdade ele lutaria por qualquer coisa.
            Ele é um guerreiro. Foi um guerreiro. Há muito tempo.
            Hoje já não sabe mais o que é. A vontade de ser o primeiro se foi. A pressa se foi. A chama se apagou.
            O guerreiro aposentou a espada e fez de suas vestes de batalha, sua armadura, peça de decoração. Mera mobília. Ele já não consegue olhar para ela, por isso a tirou da sala onde estava e a guardou em um quarto escuro, que ninguém mais usa.
            Ultimamente, para sua vergonha, ele tem se perguntado pelo que, nos dias de hoje, ele lutaria.
            “Acho que por nada” – tristemente conclui.
            Antes de iniciar a longa caminhada para sua casa o homem olha mais uma vez para o mar calmo e folheado de ouro barato do Estreito de Skagerrak e se esforça para lembrar o nome pelo qual aquela porção de Mar do Norte, que separa a Dinamarca da Noruega, era chamada nos tempos antigos, no seu tempo.
            “Nos bons e velhos tempos”.
            E se recrimina pelo saudosismo piegas, mas não consegue evitar pensar assim, bem como não consegue se lembrar do antigo nome do estreito. Com uma nota mental de se lembrar de perguntar ao seu amigo o maldito nome, inicia a caminhada. Ele mora longe, fora dos limites da cidade, no topo de uma colina cercada por um bosque verdejante, e não tem carro; na verdade tem, mas não gosta de usar, prefere andar, não importando a distância.
            Não tem pressa.
            Se ele conseguisse chegar em casa sem se esquecer da nota mental, o seu amigo com certeza responderia à sua pergunta, ele, o amigo, sabe muitas coisas, e, se estiver de bom-humor; o que seria uma raridade; pode até dizer. Não que isso fosse importante, quase nada importa mais nestes dias, mas poder se lembrar de coisas já há muito acontecidas o ajuda a se sentir vivo; ajuda a evitar o vazio para o qual ele sente que sua vida o arrasta. E no vazio só há escuridão.
            Ele sabe disso. O que não faz diferença alguma.
 
continua…

[1] Chrónos (Saturno), na mitologia greco-romana é o Tempo, era um titã, filho do Céu e da Terra (Gaia).

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