
O frio da madrugada deixa o úmido focinho do velho lobo gelado, quase um bloco de gelo, prejudicando o farejar. Mas esse não é o seu maior problema. A neve, fofa em alguns pontos, engole suas patas e dificulta seus movimentos, deixando-o lento; na verdade mais lento. Desde que se ferira sua velocidade nunca mais foi a mesma. A dificuldade que tem para se mover também não é o problema.
            Fome. É isto que incomoda o velho lobo. Muito. 
            Seu
 estômago reclama. Ronca tão alto que o barulho poderia denunciar sua 
posição para algum inimigo. Sorte que seus inimigos são poucos. Bem. Não
 tão poucos assim; não ultimamente; pelo menos estes não têm poder. São 
fracos. Os inimigos de verdade, os antigos, os poderosos, estes não 
existem mais. Estão mortos. Todos eles. O velho lobo sabe disso com 
certeza. Ele os viu morrer. Sentiu o gosto doce do sangue de cada um 
deles. Pensar em sangue fez sua fome aumentar. 
            As reclamações do estômago vazio pioraram. 
            Este
 inverno está sendo rigoroso, o mais cruel dos últimos tempos. O lobo já
 viu piores, a diferença é que nos outros a caça era abundante. E ele 
tinha dentes. 
            Cansado,
 o velho lobo pára. Sente o ar. Esforça-se para identificar os muitos 
odores que o vento gelado traz. Tem dificuldades em fazê-lo. Ultimamente
 todos os cheiros tendem a ficarem iguais, uma mistura de fumaça e 
fezes. Mais de fezes. 
            Suas
 grandes orelhas se levantam, seus pelos grossos e negros, muitos já 
prateados, eriçam. Ele se alegra. Uma presa. O vento trouxe uma promessa
 de comida na forma de um cheiro, tênue, mas inconfundível. Sangue. Ao 
Sul, só não sabe precisar a que distância, mas não deve estar longe. 
            Antigamente
 o lobo saberia dizer, com exatidão, o tipo da presa e a que distância 
estava, saberia até se estava ferida ou não, mas isso foi antes, hoje se
 contenta em poder sentir o cheiro e saber a direção a seguir.
            Com
 renovado animo, o velho lobo salta, galantemente, por sobre os montes 
de neve. Seu corpo robusto e pesado levanta uma nuvem de pequenos flocos
 que brilham na luz do luar a cada salto. Lua cheia. Noite clara. E uma 
presa. Nos singelos detalhes o mundo parece de novo perfeito. Ele gosta 
destes momentos, da antecipação da caça, o faz sentir-se jovem. Cheio de
 vida. Pena que em poucos instantes seu fôlego fraqueja e ele se vê 
obrigado a diminuir o ímpeto da corrida.
            “Pelo menos, desta vez, não fiquei zonzo” – pondera o velho lobo.
            Perceber
 a fraqueza que o tempo lhe impôs entristeceu o velho lobo, como sempre 
fazia. Nestas horas ele se lembra do Caolho. Isso o ajuda a se animar.
            O
 Caolho foi, de longe, seu pior inimigo, o mais poderoso, mas, no fim, 
como todos os outros, também tombou. Não sem antes lutar, é claro. 
Batalha gloriosa. Sua maldita lança, que sempre acertava onde ele 
queria, penetrou fundo no lado esquerdo do lobo, pouco acima da pata 
dianteira, bem sobre o coração. Fatal. Caso o coração estivesse ali. Não
 estava. O lobo nasceu com um pequeno defeito; seu coração está alguns 
centímetros fora do lugar onde normalmente fica o órgão. Na certa coisa 
herdada do seu pai. Ninguém nunca soube disso. Nem o próprio lobo. Isso 
salvou sua vida, e condenou o Caolho, bem como aqueles traidores da raça
 que o defendiam. Todos os dois. Do ferimento só resta uma cicatriz 
enorme; e uma certa dificuldade para mover a pata. 
            Bons
 tempos. Pensar neles alegra o ancião. Recordar o passado alegra a 
qualquer velho, pouco importa se ele é um lobo. Pena que não havia 
ninguém por perto para ouvir a história. Se seus inimigos caíram, seus 
amigos também se foram. Desde há muito o velho lobo caminha sozinho, sem
 ninguém para mastigar por ele.   
            Logo seus olhos divisam, ao longe, a silhueta de uma cabana. 
            Uma
 construção simples; só troncos de madeira e uma cobertura de capim 
seco; em meio a uma clareira erma e desolada. O velho lobo pára. A 
certeza o atinge. A esta distância é impossível não distinguir o cheiro.
 É sangue de cordeiro. 
            “Odeio cordeiros” – lembra-se – “não são confiáveis” – completa. 
            Mas a fome é imperiosa. 
            O
 velho lobo é forte; muito até, porém tudo que existe tem seus limites; 
os dele estão próximos. Já foram mais amplos, seus limites, hoje são 
risíveis; para ele pelo menos. Os cordeiros em muito são culpados disso;
 criaturas fracas, mas quando se juntam são capazes de fazer ruírem 
grandes fortalezas. Evitá-los tem sido uma boa coisa que o lobo tem 
feito até hoje. Algo que gostaria de continuar fazendo. Só que não pode,
 não desta vez. O cheiro adocicado de sangue empesteia o ar, 
enlouquecendo seus instintos.
            “Carne é carne” – conclui – “mesmo que sejam cordeiros asquerosos”.
            Um
 pouco incomodado o lobo busca se aproximar da cabana, com cautela. Em 
se tratando de cordeiros, todo cuidado é pouco. O lugar está muito 
silencioso, sem a costumeira algazarra que os animais domésticos 
costumam fazer. Não há sequer fumaça saindo pelos vãos das paredes da 
cabana. Parece abandonada. Dias ruins estes em que o lobo vive, primeiro
 foi a epidemia de cordeiros, que se alastrou por todos os lugares, 
corrompendo antigas crenças; agora é a fome que campeia livre pelo velho
 mundo, não poupando nada, nem ninguém. Ele não sabe dizer o que foi 
pior. 
            Mesmo
 com a escassez de comida, que tem piorado ano após ano, os últimos dias
 foram excepcionalmente ruins. Já faz mais de dez dias que o lobo não 
encontra um osso sequer para roer. É como se uma nuvem de gafanhotos 
famintos fosse à sua frente, comendo tudo, não deixando nem mesmo 
migalhas para trás. Está cansado de só lamber gelo. Sua língua anda tão 
fria e amortecida que teme que ela caia.    Por isso, cordeiro ou não cordeiro, hoje o lobo vai comer carne.
            Orelhas
 em riste; pêlo eriçado; garras à mostra; movendo-se sem fazer o menor 
barulho; o lobo se aproxima da porta da cabana, que está entreaberta. A 
cada passo piora o cheiro de sangue, o que faz sua fome aumentar. 
            O
 interior da morada; nada além de um retângulo sem divisões; está 
escuro. E tão frio quanto o lado de fora. A luz da lua, entrando pelas 
frestas nas paredes e na cobertura, criva a penumbra de lanças 
luminosas. O ar é sufocante; tenso. As palhas secas espalhadas pelo piso
 de terra batida se quebram sob o peso das patas do lobo, emitindo um 
barulhinho quase inaudível quando ele se move. Salvo por vários 
amontoados cobertos por um tecido rústico de cor marrom, que estão 
espalhados por todos os cantos, encostados nas paredes, a cabana está 
vazia. O buraco para o fogo estava cheio de cinzas. O velho lobo não viu
 nada disso. Desde o momento em que ela colocou as patas dentro da 
construção, a única coisa que percebeu foi o filhote. Nada mais. Seus 
olhos arregalados estavam como se enfeitiçados pela visão que tinha à 
sua frente. 
Na
 viga central da cobertura. Suspenso por uma corda rústica. De cabeça 
para baixo. Um filhote de cordeiro. Tenro ainda; viu no máximo uma 
primavera. Morto. Recentemente. Não mais de um dia. Teve a garganta 
cortada. Seu sangue, já em vias de ficar negro, jazia em uma grotesca 
poça sob ele. Pequenas gotas ainda escapavam do profundo ferimento, 
intercaladas, indo se juntar ao pequeno lago que se formou no piso de 
terra, onde alguns insetos, vencendo o frio, zumbiam preguiçosos. 
Pedaços de palha boiavam em meio ao turvo líquido.  O filhote era macho, não tinha pêlos, só alguns, escassos, no alto da cabeça, e era gordinho, rechonchudo. Saboroso. 
            A
 fome cegava o lobo para tudo que não fosse a carne e o sangue. Um 
rosnar rouco e profundo escapou de sua boca enquanto se aproximava do 
filhote morto que balançava ao sabor do vento que entrava pelas frestas,
 a rústica corda rangia hipnótica com os movimentos do pequeno corpo.   
            “Carne fresca” – era só o que estava em sua cabeça. 
            De
 sua boca desdentada escorria espessa baba. Não precisaria de dentes 
para rasgar aquele couro macio, a força da sua mordida bastaria. 
Retesando os músculos, o lobo preparou-se para saltar sobre a comida 
que, como presente da divina providência, surgiu em seu caminho. Com um 
rosnado gutural, saltou. No mesmo instante um barulho similar ao ruflar 
de grandes asas ecoou dentro da cabana. E fantasmas surgiram ao redor do
 lobo. Fantasmas marrons. Seu coração, já agitado, disparou, inundando 
seu corpo de adrenalina, clareando seus instintos embotados pela fome.  Não
 eram fantasmas. Nem asas ruflando. Eram coisas ainda piores. Cordeiros.
 Adultos. Armados. Estavam escondidos sob os panos marrons que foram 
jogados para cima. Havia dezenas deles. Todos ostentando grandes cruzes 
vermelhas no peito, balindo ao mesmo tempo; se bravos ou assustados o 
lobo não saberia dizer. Num piscar de olhos o caos se instalou dentro da
 cabana; tudo acontecendo ao mesmo tempo.
            No
 meio do salto o velho lobo desistiu do filhote, passando por ele sem 
abocanhá-lo. Em pleno ar começou a se transformar. Esquecendo 
completamente a fome. Ao tocar no piso de terra já não era só um lobo, 
era algo mais. Apoiado sob as patas traseiras, que lembravam vagamente 
pernas humanas, virou seu corpanzil, encarando seus inimigos. Tinha mais
 que dobrado de tamanho. Sua cabeça agigantada tocava o capim seco da 
cobertura; as patas dianteiras agora eram braços alongados que 
terminavam em mãos enormes, de dedos disformes, munidos com garras 
pontiagudas. O velho Fenrriz nunca foi um lobo comum, muito pelo 
contrário e, mesmo sem dentes, ainda era um inimigo de valor, agora 
estes cordeiros insanos veriam isso. Saberiam da sua força, da sua 
selvageria. Um uivo animalesco se ouviu, suplantando todos os outros 
sons. Longo. Ensurdecedor. Seu grito de guerra. Houve dias em que isso 
seria o bastante para fazer tombar de medo um inimigo. Agora não mais.  
            A
 resposta ao uivo veio na forma de uma sinfonia de cordas retesadas se 
soltando. Bestas foram disparadas. Muitas delas. Dezenas de setas 
voaram, leves como plumas, na direção do velho lobo que acabara de se 
tornar uma mistura sobrenatural de fera e homem, mais de fera. Fenrriz 
as viu se aproximarem, atravessando os feixes de luar; a cada raio de 
luz um brilho fugaz. Prata. As pontas das setas eram de prata. Justo o 
metal que tanto mal lhe causava, feridas feitas com prata não saravam 
tão facilmente quanto as outras. Na certa sabiam disso. 
            “Armadilha” – gritou o instinto do lobo. Pena que tarde demais. 
            Bem
 lá no fundo, Fenrriz se recriminou por não ter percebido o engodo assim
 que chegou na cabana. Talvez seu tempo tenha realmente passado; que não
 há mais lugar para ele neste velho mundo que a cada dia se modifica. 
Fica pior. Inconscientemente desejou que, no outro mundo, seus dentes 
cresçam de novo. A longa viajem iria se iniciar. Só não queria que fosse
 assim, não na mão deles, que fossem outros a enviá-lo em sua última 
jornada em direção ao Valhala. Sempre imaginou que, na sua hora final, 
tombaria ante inimigos mais dignos, menos traiçoeiros. Com mais honra. 
Usar o filhote como isca foi muito torpe, até para estes malditos.            
            “Odeio cordeiros…” – pensou o velho lobo quando as setas de prata o atingiram.
FIM
 
 
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