Uma das coisas que mais aborreciam aquela mulher de trinta e
dois anos era ter que ir ao centro da cidade. Fernanda não suportava
atravessar as ruas tão movimentadas segurando sacolas e mais sacolas das
compras que fazia todo sábado, e era difícil andar normalmente, pois
talvez para fazer logo o que tinha que fazer parecia que tinha mais
pressa dos que as outras pessoas no meio da multidão. Era uma mulher
prática e não tolerava contratempos e inconveniências.
Sua impaciência levava-a a se contorcer em ultrapassagens
perigosas e em curvas sinuosas nas calçadas e cruzamentos. Era como um
veículo em missão de urgência, uma máquina perfeita controlada pela
racionalidade das leis da física. E era tudo em nome da liberdade de ir e
vir — talvez naquele instante contasse mais a liberdade de ir do que a
de vir, pois o vir era tão terrível, e precisava urgentemente da
liberdade de chegar logo em casa. O calor do dia se tornava intenso e
ela já estava quente por dentro. Sentia o próprio sangue ferver como um
líquido inflamável. “Você tem um gênio muito difícil”, sua mãe já lhe
dissera algumas vezes. Mas como permanecer calma num trânsito intenso de
pessoas como aquele? Pensou na necessidade de ficar calma. “Mas para
quê?”, perguntou-se, sem conseguir chegar a uma resposta. Pensar em se
acalmar só fazia aumentar sua impaciência.
Parecia que todo ponto de ônibus ainda estava longe demais, e as
sacolas de plástico cheias de compras agora não incomodavam tanto
quanto o peso que sentia nas costas. Uma pontada de dor que ameaçava
aumentar, provavelmente culpando-a pela sua pressa. Mas a pressa sim,
era necessária. Queria tanto chegar logo em casa, guardar as compras e
descansar no sofá confortável da sala assistindo à novela das seis.
Um carro quase a atropelou quando suas pernas insôfregas
avançavam o sinal vermelho para pedestres. Como se estivesse numa
corrida de fórmula um e pudesse competir de igual para igual com os
outros carros. Já na calçada do outro lado da rua, vitoriosa, sorriu por
dentro — era impossível expressar o sorriso em seus lábios, já que não
tinha tempo pra isso e também o pensamento de sorrir era mais rápido.
Entretanto, ao continuar o percurso à sua frente não se deu conta dos
lados, e, mais uma vez andando a passos largos, acabou trombando na
calçada com um rapaz que carregava jornais para entrega.
Com o choque, os jornais caíram todos no chão, junto às sacolas
que ela levava. Em meio ao susto, Fernanda viu o que para ela era uma
ironia do destino. Os jornais molhavam nas poças d´água e voavam ao
vento, e as sacolas se abriram, espalhando suas compras por todos os
lados. Latas de molho de tomate e de atum rolavam pelo chão, e uma delas
foi mesmo atirada ao longe pelo chute de um pedestre, que pareceu não
ver o que acontecia. Ou talvez fizera de propósito mesmo. O presunto
saíra do papel e as garrafas de vidro se quebraram, entornando o suco de
acerola que ela há bastante tempo queria experimentar, mas que agora
tinha gosto de rua e fazia-a sentir um gosto amargo em sua boca
escancarada por causa do espanto.
Ao ver aquilo tudo, uma grande raiva apoderou-se dela e já ia
xingar o rapaz pelo que tinha acontecido quando se conteve por perceber
que a culpa fora dela mesma. A culpa era de sua pressa. Fechou o rosto
assim mesmo. Não era dada a escusas.
— Meus jornais, olha o que você fez… — disse ele, desapontado, pedindo uma explicação de sua parte.
Deu-lhe então um dinheiro e disse-lhe que estava muito descuidada
e com muita pressa. O rapaz ainda olhou um tanto decepcionado para
ela.
Fernanda recolheu aquilo que poderia ser salvo do desastre das
compras e colocou de volta nas sacolas, enquanto o rapaz corria pela
calçada atrás dos jornais que poderiam ainda ser aproveitados. “Que
dia”, Fernanda pensou, “Tudo é tão difícil, não devia ter saído de casa
hoje”.
Acerola nunca mais. Desistira de vez de experimentar. “Devia ser
horrível mesmo”, pensou, procurando talvez uma compensação. “A vida já é
ácida demais”. Precisava chegar logo em casa.
Seguiu em direção ao ponto de ônibus, segurando ainda nas nãos
as sacolas das compras que sobraram. Dava passos maiores que as pernas
carregando sua ânsia implacável. Decidia que a pressa era inevitável, e a
partir de então a pressa era somente sua, pois já tinha pago um preço
por ela naquele dia infeliz.
Mas então parou. Como se despertada por uma obrigação súbita.
Notou o que estranhamente acontecia na vitrine da loja de roupas logo à
sua frente. Colocou uma das sacolas no chão e, com as costas da mão,
esfregou os olhos, intrigada.
Aqueles manequins a observavam, e pareciam ter deixado seu
mundo particular por sua causa. Todos os três, vestidos com as roupas
que a loja vendia, olhavam pra ela com pavor, como se acometidos de
grande espanto por causa de sua presença. Olhos profundos que a
investigavam como se ela fosse a única pessoa que havia na multidão.
Tentou entender direito o que estava acontecendo, e vendo que
aqueles olhares indiscretos não desviavam a atenção sobre ela, Fernanda
procurou despistar, olhou para um lado, depois para o outro, e viu que
ninguém notava qualquer anormalidade por ali. Pessoas passavam e olhavam
a mesma vitrine ameaçadora como se nada de ameaçador estivesse
acontecendo, comentando ainda entre si como era bonito aquele vestido
naquele lado da vitrine ou como estava barato, ou como estava cara
aquela roupa na exposição.
Entretanto ali estavam aqueles olhares vivos de pavor que continuavam a perscrutá-la, e pareciam estar indignados.
“Mas por quê?”, ela se perguntava. “O que há de errado comigo?”. E
olhou para si própria, tentando encontrar alguma falha ou sujeira no
vestido vermelho que ela estava usando, talvez a meia desfiara ou o
salto tinha se quebrado.
Então se lembrou que naquela manhã havia feito um remendo no
vestido. Não tinha ficado muito bom e então devia ser isso, ela pensou.
Porém percebeu que eles não estavam olhando especificamente para o seu
vestido com a alça mal costurada.
Olhavam nos olhos dela. Fernanda sentiu que sua maquiagem havia
se desmanchado. Mas como poderia saber disso se não havia nenhum espelho
à sua volta?
Mas era porque conseguia ver a sua imagem disforme no vidro da
vitrine. Seu rosto refletido estava esquálido e sem expressão. Mas e o
pavor que sentia? Viu novamente aqueles olhares inquietos que a invadiam
e encaravam-na de frente, sérios e tomados de pavor. Como se ela
estivesse expelindo sangue pela boca. Não apenas um filete, era como se o
sangue estivesse jorrando por seus lábios.
“Por que estão fazendo isso comigo?”, ela se perguntou, e um
grito de medo quase escapulira de sua garganta mas logo se conteve, pois
não queria aceitar o medo. Viu-se assaltada de si mesma e não tinha
armas pra poder reagir.
Pensou que aquilo tudo era como um vento frio que penetrava em
seu corpo e só de pensar nisso já começava a tremer — Medo ou frio?
Talvez fosse tudo isso, mas naquele instante não sabia direito.
Aqueles olhares repreendiam-na e repudiavam-na sem palavras.
Sentiu-se insegura e desconfortável sabendo que era vasculhada por
dentro, e era como se naquele momento era ela o manequim e parecia
vestir algo que ninguém compraria.
Fernanda viu-se acometida da denúncia involuntária de si mesma.
Se alguém estivesse a observar aquela situação poderia pensar o pior
dela. Assistia na vitrine um drama que era seu. Um mal-estar em si.
E como se já não bastassem as expressões de pavor, os manequins
da loja subitamente começaram a gritar para ela, e Fernanda, atordoada
pelo susto — podia ouvi-los a gritar — quase deixou suas sacolas caírem
ao chão mais uma vez.
Gesticulavam para ela. Movimentavam os braços, apertavam a
cabeça com as mãos e escancaravam bocas e olhos aterrorizados. Olhavam
para cima e agora gritavam palavras mudas de agonia.
“Meu Deus”, pensou aflita, “o que foi que eu fiz…”
Vítima de suas próprias atitudes, agora se sentia culpada.
Lembrou-se que há muito tempo sua mãe lhe dissera, quando faziam
compras juntas, que os manequins das vitrines de lojas entendiam os
sentimentos e desejos das pessoas. Tinham experiência e estavam
acostumados a isso. E Fernanda, em meio ao medo comprovado, chegou à
conclusão de que eles tinham razão.
E um grande arrependimento tomava conta dela por não ter se dado
conta antes de algo que poderia ter evitado. Então saiu correndo dali,
deixando os manequins que ainda gesticulavam na vitrine. Naquele
instante mais do que nunca precisava chegar em casa.
Depois de vinte minutos esperando no ponto — o que fez aumentar
sua aflição – o ônibus finalmente chegou. Estava muito cheio mas não
quis esperar por outro. No caminho, em pé com as sacolas de compras, viu
pela janela do ônibus que todas as ruas vinham e passavam, e só a dela
não chegava nunca.
Até que então finalmente estava na porta de sua casa.
Experimentou o trinco e a porta abriu-se. O marido devia estar em casa,
sentiu-se aliviada por saber disso. Ao entrar viu que lá estava ele,
sentado no sofá em frente à TV. Ele parecia ter chorado muito e a sua
mágoa naquele momento parecia ter eliminado a alegria costumeira de seu
jeito de ser.
Fernanda olhou-o nos olhos e sentiu-se horrível vendo a tristeza
dele. Estava triste consigo mesma. Ainda com as sacolas nas mãos, pois
então nem mais se lembrava delas, aproximou-se dele dizendo:
— Por favor, David, me desculpe.
E a sua voz soou como uma súplica.
— Perdoe-me, eu não queria ter feito aquilo.
Ele virou-se para Fernanda com o semblante sério. Ela estava
apreensiva e demonstrava sinceridade. Revelava-se a ele e também,
afinal, a si própria.
Foi quando ele então sorriu pra ela.
FIM
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