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O
ambiente era opressor, muito embora fosse apenas uma sala fechada e sem
janelas, muito comum à maioria dos grandes prédios de escritórios.
Ainda assim, para José Marcindo Gomes, parecia-lhe a ante-sala do
Inferno. Sentado em uma cadeira, tendo à frente somente uma mesa vazia,
ele tremia de nervosismo e ansiedade, quase de maneira descontrolada. Na
mente, não lhe passava como teria sido possível tudo ter se precipitado
da forma que ocorrera. Fora errado ter-se envolvido pessoalmente, sabia
disso, mas sequer cogitava em questionar os desígnios de José Cândido
Renan, ou melhor, o Ministro, como fazia questão de ser chamado.
Quando
a porta se abriu às costas, nem se virou, pelo contrário, afundou o
rosto, cobrindo-o com as mãos. Temia olhar as faces do homem que
adentrara, temia-lhe os olhos e mais ainda, suas palavras, mesmo as
suaves, as de fé e de dignidade. Ainda que falasse sobre bondade e
benevolência, aquela voz lhe transmitia medo desmesurado.
– Marcindo.
O
tom com que fora proferido o nome, apesar de soar calmo e moderado, lhe
penetrou os ouvidos como facas, rasgando e ferindo-lhe o cérebro. No
instante seguinte, duas mãos pousaram-lhe os ombros, fazendo-o
estremecer.
– Meu bom Marcindo.
Ele
fez uma tentativa vã de se voltar, mas aquelas mãos pressionaram-lhe
com maior intensidade, deixando claro que deveria permanecer como
estava, sem se virar. Gotas de suor porejavam-lhe à testa, seguidas de
um gosto acre que lhe subia à garganta. Só reprimiu a ânsia à custa de
muito esforço.
–
Não se preocupe – disse a voz branda, como lhe adivinhando os
pensamentos. – Se esta era a vontade d’Ele, não há porque se preocupar,
está tudo bem. Todos nós erramos, e foi apenas isso o que aconteceu,
você errou e errar é do homem.
– M-ministro, eu…
– Shiiii… não é necessário dizer coisa alguma, estou ciente.
Marcindo balançou a cabeça, quase frenético, concordando.
O homem às costas aproximou-lhe o rosto, falando-lhe junto ao ouvido.
– Você pode ir, eu o perdôo. Você apenas não deve falar nada sobre nossos contatos.
– M-ministro, a polícia… eles querem…
–
Sei bem o que querem, Marcindo, e não haverá problema algum. Jamais
deixaria um dos nossos ao alcance das feras, jamais abandonaria qualquer
um às sombras que se infiltram nos corações dos homens. Nosso corpo
jurídico já se encontra tomando providências para que todas as acusações
sejam retiradas.
– Ministro, eu n-não sei como agradecer e…
–
Esqueça, isto é o mínimo que posso fazer por alguém tão dedicado e que
sempre colocou a Luz e a Verdade acima de tudo. Contudo, para que o Mal
não prevaleça, preciso uma vez mais de sua ajuda, seus préstimos.
Ninguém deve saber que nos conhecemos, além de possíveis encontros
casuais em nossos cultos, percebe como isso seria perigoso? Pode fazer
isso por mim, Marcindo? Por Ele?
– P-posso, Ministro, p-posso! Qualquer coisa que pedir, eu juro… eu…
–
Não há necessidade de juramento, meu bom homem, sua palavra me basta, é
a maior garantia que alguém pode dar. Agora vá, descanse um pouco e
manhã ou depois, quando achar conveniente, retome suas atividades. Assim
como Ele perdoa, também sei perdoar, afinal, esta não é a nossa maior
graça?
–
S-sim, Ministro, o senhor tem razão, como sempre. Abençoada seja a sua
visão privilegiada, muito obrigado por sua compreensão… muito obrigado!
–
Não agradeça a mim, Marcindo, sou apenas um humilde homem fazendo o
trabalho a mim designado. Agradeça a Ele e a graça que lhe foi
concedida.
O
homem soltou-lhe os ombros e se afastou. Marcindo se levantou,
atrevendo-se a olhá-lo, porém o homem permaneceu estático, claramente
com os olhos voltados à outra direção, deixando claro que, apesar das
palavras ditas, não se dignaria a se voltar a ele.
Marcindo murmurou mais um obrigado, repetido algumas vezes, e se
despediu, tão baixo que sua voz era quase inaudível, deixando a sala em
seguida.
Renan permaneceu imóvel por uns minutos, sinalizando em seguida a outro homem, que se postara à porta, seu advogado pessoal.
– A informação foi passada? – questionou com voz fria, sem se virar, como se falasse para as paredes nuas à frente.
– Está tudo certo – confirmou o advogado, com um leve aceno de cabeça. – Eles cuidarão dele.
– Ótimo – respondeu, de modo seco. – E quanto ao fornecimento, ainda é confiável?
–
Sem dúvida, desde que agora tratemos pessoalmente com eles. Continuam
interessados, porém, depois do ocorrido, só aceitarão se tratarem
diretamente com a cúpula.
As faces de Renan se endureceram, pensativo, mas apenas por poucos instantes.
–
Tudo bem, se formos cautelosos, isso não será importante. Em breve
chegaremos à parte mais delicada e precisaremos contar com o apoio
deles. Desenvolver outro fornecedor nos tomaria tempo por demais
precioso.
Por fim, o Ministro se voltou para o advogado.
– Você deverá tratar de tudo pessoalmente. Só posso confiar em você para o que vem à frente.
– Assim será feito, Ministro – confirmou o advogado e saiu.
Sozinho
na sala vazia, o homem ficou mais um bom tempo estático, simplesmente
olhando para lugar algum. Contudo, não eram paredes vazias que ele
enxergava, era o futuro. A Luz e a Palavra; o Raio e o Trovão.
11
Marcindo
saíra pelos fundos e evitara a imprensa, conforme lhe fora orientado.
Livre desse assédio, dirigiu-se à sua residência, em um bairro tranqüilo
e afastado, contudo, não chegou a entrar em casa, mal vendo o estranho
se aproximar. Os dois disparos a queima-roupa o jogaram contra a porta,
desabando sem vida, em seguida. O desconhecido tomou-lhe o celular e a
carteira, para forjar um assalto, pulando pelo muro e sumindo na rua.
O recado fora claro, Casimiro não admitia falhas.
12
Duas semanas depois.
A
Logística levantara toda e qualquer informação sobre a Igreja da Luz e
da Revelação, assim como sobre seu fundador, João Cândido Renan,
contudo, não achara nenhum indício que os ligassem ao contrabando de
armas ou a qualquer contato com Casimiro.
Nesse
meio tempo, o envolvido direto no incidente havia sido morto em uma
possível tentativa de assalto, à porta de casa, algo bastante comum
naqueles dias, mas bem conveniente. Apesar de participar do médio
escalão da igreja, não fora possível associar Marcindo a Renan em
nenhuma ocasião, tendo o corpo jurídico da igreja se manifestado que
aquele havia sido um ato isolado de uma pessoa desesperada, despreparada
e de pouca fé, tendo se deixado sucumbir ante a vontade do Mal e das
sombras, e que a entidade lamentava muito o ocorrido, envolvendo um de
seus seguidores.
Contudo, os fatos continuavam a se alastrar.
O
coronel Campos ficou olhando a tv, muito embora não se detivesse às
imagens. Os pensamentos se atropelavam, procurando dar algum sentido a
tudo aquilo. As chamadas havia se iniciado há poucos dias, e agora,
Renan em pessoa passava a aparecer na mídia televisiva, primeiramente
destacando aquilo que chamava de “Passeata pela Palavra”, um ato público
de fé, que se iniciaria com a reunião de fiéis no Maracanã, em um
domingo, dali a pouco mais de um mês. Ao mesmo tempo em que Renan
procurava divulgar e despertar o interesse das pessoas, seus advogados
trabalhavam para obter as autorizações necessárias. Após a reunião, o
culto pretendia realizar uma passeata simbólica pelos direitos de
protestar contra os maus costumes, que cada vez mais, nas palavras
deles, infestavam e dominavam o país em todos os escalões sociais.
Um
dos pontos de preocupação de Campos era relativo à adesão de várias
personalidades da sociedade, fossem políticos de renome ou artistas de
destaque. Em curto espaço de tempo, a despeito das notícias sobre a
apreensão de armas e o envolvimento de um de seus funcionários, a Igreja
da Luz e da Revelação ganhava influência e prestígio, e com isso,
poder.
Ele
não gostava daquilo. Algo se achava de muito errado, o instinto lhe
dizia. No entanto, apesar de toda malha fina de investigação, seus
homens apenas descobriram a intenção de Renan de passar a apresentar, a
partir dos próximos dias, sermões diários, voltados aos fiéis. Em outras
palavras, nada de novo em relação à pregação que já ocorria, de maneira
desmedida, nos meios televisivos.
O
coronel desligou a tv e se recostou. Por hora, havia pouco mais a
fazer. Teria de se contentar em ouvir o que aquele homem pretendia
dizer.
13
–
…e haverão de temer os pecadores, que não se fartarão à punição sem
clemência, pois é isso que nos ensina a palavra. Então, aqueles que
honram a herança e o saber, a bondade e a misericórdia, também honraram
as horas difíceis e de provação, mas com Ele no coração, nada mais serão
que apenas uma fagulha de menor importância, no seio da harmonia
infinita que haverá de se seguir!
O
homem se calou por um breve instante, em uma parada ensaiada, para dar
mais peso e intensidade às frases proferidas. E após algum tempo de
silêncio, finalizou de maneira dramática.
– E por fim, vos pergunto, a mesma questão de há milênios: se Ele está comigo, quem estará contra mim?
14
O
quarto de hotel era luxuoso, mas não ao extremo, exatamente aquilo que
caberia a uma representante de uma industria estrangeira, em negócios no
país.
A
jovem, registrada sob o nome de Tatiana Michalovna, desligou a tv,
intrigada sobre o discurso que acabara de ouvir. Aquele homem lhe era
estranho, pregava amor e misericórdia ao mesmo tempo em que conclamava à
punição e inclemência. No fundo, não via diferença entre outros tantos
fanáticos, muito embora, algo naquele olhar lhe inspirava desconfiança e
cuidados. Fosse como fosse, aquela não era uma de suas preocupações. O
contato de Casimiro confirmara o pedido de dez mil Kalashnikov AK-47,
com quarenta mil pentes extras, o que daria quatro reservas para cada
arma.
Contudo,
o que mais saltava aos olhos, destoando pelo fato de ser inusitado,
eram vinte mil modernas pistolas Tocarev TS, que dispensavam a
utilização de silenciadores e ainda assim, quase perfeitamente
silenciosas. Fruto de um desenvolvimento recente de alta tecnologia, a
potência permitia-lhe transpassar sem dificuldade um capacete de kevlar
ou uma placa de aço de dois milímetros de espessura, a uma distância de
vinte e cinco metros, sem comprometer-lhe a capacidade de impacto. Seu
uso era exclusivo das SPETSNAZ (SPETSialnogo NAZnacheniya – Unidade de Operações Especiais) ou da SVR, Sluzhba Vneshnej Razvedki, o equivalente russo da CIA.
A
jovem apertou os lábios. Aquele homem, um líder das muitas seitas que
de desenvolviam pelo país, estava se armando de modo superior a qualquer
traficante e mesmo, a muitas guerrilhas ou pequenos exércitos. Não
imaginava o que ele poderia ter em mente, talvez uma verdadeira
revolução armada, no entanto, deixou os questionamentos de lado, não se
encontrava ali para isso. O pedido fora confirmado e era hora de
contactar Moscou.
Continua...
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