1
Foram
dois ou três segundos apenas: no primeiro, seus lindos olhos azuis eram
vivos, como um oceano sereno, perdidos no paraíso… no segundo,
embaçados, como olhos retirados de um velho quadro empoeirado, sem
qualidade alguma.
Sim,
Jéssica morrera em meus braços, entre os destroços de seu ateliê, em um
dos piores terremotos que atingira o sul do Brasil… e o caos havia
somente começado, o pior ainda estaria por vir, sabia disso, embora não
desejasse realmente saber.
Os
olhos embaçados de Jéssica encontraram-se com os meus, sobre o reflexo
de um pedaço de espelho disforme, velho e sujo… Eram lembranças amargas.
- Maldito Dom! – exclamei para mim mesmo, arremessando o espelho em um dos cantos escuros e úmidos do casebre.
Nem
mesmo sedado conseguira cessar as visões que tanto me perseguiam desde
criança… era um dom, como uma maldição, que me transformou, com o tempo,
em uma pessoa estranha, hipocondríaca. Qualquer dor que o corpo
reclamasse, era para mim como um pressentimento de morte… nem sempre
conseguia distinguir o comum do anormal.
Com isso, acabara perdendo o contato com os amigos, com os familiares que tentaram algumas vezes internar-me.
O
problema maior era que as visões surgiam de forma pronta, inflexível,
sem possibilidades de alterações. Mostravam exatamente o que aconteceria
segundos, minutos, horas ou dias depois, sem que jamais se conseguisse
alterar seu contexto final.
Então
alguns questionamentos alfinetavam-me o raciocínio: por que elas
surgem, uma vez que são imutáveis? Seriam apenas para atormentar minha
sanidade, meu coração e espírito?
Jéssica não fora a primeira e não seria a última a morrer em meus braços.
2
Nunca me acostumara com as visões. Elas continuavam sendo cada vez mais chocantes e assustadoras para mim.
Recordo-me
da minha primeira entrevista, como candidato a jornalista, no prédio da
rádio CBN… nessa época, já havia conseguido um pouco mais de intimidade
com a anomalia.
A
conversa iniciou-se franca, aberta e amiga. Heitor, o editor
responsável pelas contratações, possuía idade suficiente para ser meu
pai, contudo não disfarçava seu lado narcisista, vestindo um terno
impecável. Havia abandonado sua cadeira no lado oposto à mesa e sentado
ao meu lado. Mantinha seu laptop aberto à frente, na página oficial da
rádio, enquanto conversávamos.
A
receptividade estava sendo melhor do que a esperada, embora tal
entrevista tivesse sido recomendada por uma colega de faculdade… talvez a
tivesse subestimado em seus contatos.
Em
dado momento, quando fixei o olhar na tela do laptop, na linha
destacada de notícias, que sumia vagarosamente e tornava a surgir, algo
conhecido aconteceu: senti aquele mal-estar crescer vertiginosamente,
vindo diretamente do estômago e atingindo as extremidades do corpo como
um raio; depois a realidade se distorceu em alguma parte, com
simplicidade, como sempre acontecia, normalmente em traços difusos, como
se fossem desenhos infantis mal acabados.
Na
tela do seu laptop, as letras passaram a liquefazer, escorrendo dentro
do monitor… havia algo de assustador naquela distorção. Algumas vezes
essas aberrações não eram tão assustadoras… às vezes, talvez até por
ironia, elas chegavam à margem da comédia. Entretanto, o fim da história
resumia-se sempre em duas circunstâncias: catástrofe e imutabilidade.
A
imagem passou a trepidar, oscilando a claridade do monitor, como se
estivesse acometido de alguma falha na energia. De inopino, entre os
traços que escorriam pela tela, durante as oscilações, e como uma
mensagem subliminar, notei que havia algo se movimentado com
dificuldade… algo que se esforçava em aparecer.
Semicerrei
os olhos, enquanto Heitor discursava com sua voz cada vez mais
longínqua, e despenquei sobre os joelhos, defronte à tela do laptop,
agarrando-a com ambas as mãos.
Heitor finalmente silenciou-se, apesar de já não ouvi-lo há algum tempo.
Os traços escorridos formavam a imagem do perfil de uma mulher cabisbaixa, sentada em algo.
Com as oscilações de claridade, por vezes seus traços sumiam.
Em
uma das vezes, a imagem retornou em pé, enquanto algumas letras
escorridas maculavam sua imagem. Logo, outros traços que vertiam ao lado
formaram um tipo de parapeito antigo, parecendo-me familiar. De pronto,
o estranho desenho elevou uma de suas pernas, de traços malfeitos, e
subiu na mureta… seus cabelos oscilavam atrás, como se houvesse um forte
vento açoitando-os.
Repentinamente, um estampido explodiu em meus ouvidos, assim como o corpo da ilustração na calçada que se formou abaixo.
Havia
agora uma horrenda boca aberta se formando da mancha negra que
espirrara de sua cabeça no monitor, gritando um som estridente, enquanto
o estampido aumentava seu volume, ecoando, de forma quase insuportável
em meus ouvidos.
Quando
dei por mim, Heitor estava agarrado às minhas mãos, que tentavam
insanamente arrancar chumaços de cabelo da própria cabeça… ouvi o som da
minha voz sumindo no interior opressivo da sala.
Ao
me recompor, ainda ofegando, após a complacência de Heitor, que fora
buscar um copo d’água em um dos cantos da sala, não obstante disfarçasse
a todo o momento um olhar desconfiado sobre minha sanidade, meus olhos
mergulharam no porta-retratos postado em uma prateleira atrás de sua
cadeira de espaldar alto.
Na
foto, uma linda mulher de lado, em uma pose profissional… e, embora os
traços das visões fossem muito toscos, sempre identificava algo que as
remetiam às verdadeiras vítimas. Recordo-me que no início as dúvidas em
relação às identificações eram muitas, porém, nessa época da entrevista,
já conseguia fazer um reconhecimento com certa convicção.
- Quem é ela? – indaguei, entre uma e outra frase apreensiva de Heitor sobre a minha sanidade.
-
Hã? Ela quem? – deteve-se em pé, copo d’água sobre as mãos, procurando
por sobre os ombros, na dúvida absurda de haver alguma mulher adentrado a
sala nesse entretempo.
- Ela! – lancei. Apontando um dos indicadores em direção à foto.
-
Ah, sim! – respondeu, afrouxando o tenso tom da voz e esboçando um
sorriso tênue. – É a minha filha Estefani! Linda, não? Ela faz parte de
um grupo de balé! Eles viajam ao redor do mundo fazendo apresentações…
mas por que a pergunta? Você a conhece?
Repentinamente,
reconheci aquele parapeito que vira em recente visão. Sabia que algo me
soava familiar… tinha fotos dele em casa.
- Ela está em Santiago? – indaguei, sem retirar os olhos fixos do porta-retratos.
- Como?
- Eu perguntei se ela está em Santiago? – reforcei, em tom mais ofensivo.
- Não sei. Você quer dizer, Santiago…
- Santiago do Chile, imbecil! Você não está ouvindo o que estou dizendo?
- Ei, rapazinho, não vou tolerar que você entre aqui na minha sala e… – dizia, colocando o copo sobre a mesa.
-
Você não sabe absolutamente nada sobre sua própria filha, sabe? –
interrompi, relanceando os olhos sobre os de Heitor, que estagnou ainda
segurando o copo já depositado sobre a mesa. – Pois vou lhe dizer! Sei
exatamente onde ela está agora! Ela está em visita à PUC de Santiago do
Chile, junto com sua equipe de dança! Farão uma apresentação lá hoje à
noite! Sabe por que ela decidiu juntar-se à equipe? – perguntei, Heitor
franziu o cenho, desconfiado. Endireitou-se, cruzando os braços sobre o
peito, mantendo-se silente, na defensiva.
-
Por que você não lhe dá atenção suficiente! Ela é cheia de problemas
emocionais desde a morte da mãe! E é bulímica… Sabe o que é isso? –
inquiri, pondo-me em pé, em sua direção.
- Sim, eu sei, mas como… – dizia, enquanto se afastava.
-
Tem tomado antidepressivos há anos, você sabia a respeito disso? Claro
que não! Você tem de tomar uma decisão! Ligue para ela enquanto é tempo!
E o tempo de disponibilidade com a sua filha não será prorrogado! –
findei, agarrando meu paletó que estava sobre um sofá de canto,
retirando-me da sala.
Naquela
tarde, Heitor tomou a decisão errada. Saiu da sua sala, antes de dar
uma boa olhada no retrato de Estefani, e ingressou em outra, em uma
importante reunião da rádio. Ligaria mais tarde, quando uma colega
atenderia seu celular que estaria junto a sua mala abandonada em um dos
banheiros da PUC.
A partir dali, Estefani seria só uma recordação em um porta-retratos.
A
verdade é que em todas as tentativas que fiz para impedir uma morte,
somente consegui maximizar as conseqüências, ou seja, mais pessoas
inocentes feriam-se ou morriam.
Além
de suportar esse maldito dom, ainda tenho de controlar minha
hipocondria. Não raras vezes ainda acordo de madrugada com alguma dor
abdominal ou encefálica, achando que é um prenúncio de morte.
3
Não sei quanto tempo sobreviverei, mas tenho o pressentimento que não irei longe nesta guerra que começou há mais de uma semana.
Quem diria o Brasil envolvido em guerra com os países sul-americanos? Uma maldita e verdadeira guerra?, pensei, meneando a cabeça. Quem
diria que o terremoto que matara milhões de pessoas, e levara Jéssica,
era algo acobertado pelo governo? Algo que seria o prenúncio da guerra?
Dois dias antes do primeiro ataque, tentei avisar as autoridades… fui ao Congresso, ao Palácio do Planalto…
Primeiro
não me levaram a sério, depois tentaram me internar e, por fim,
prenderam-me por perturbação do trabalho e do sossego alheio, por não
conseguirem nada melhor. Fiquei trancafiado, mesmo cometendo um crime de
menor potencial ofensivo, comumente resolvido com a confecção de um
Termo Circunstanciado.
Somente
fui liberado após o primeiro ataque aéreo da Bolívia, que atingiu o
centro da capital do País… pura sorte ter sido levado a um distrito
longe do complexo dos três poderes.
Vim
direto a Curitiba, onde encontrei a querida Jéssica, soterrada em seu
próprio ateliê, em seu último segundo de vida… seus lindos olhos azuis
permanecerão eternamente em minhas recordações.
Agora estou aqui, recluso na serra do mar, no velho casebre da família.
O
vovô adorava este lugar e já consigo entender o porquê: há muito
silêncio por aqui, paz… a natureza o cerca, você consegue reduzir seu
contato espiritual com um mundo que ainda não conhece.
4
Tive minha última visão quando saí do distrito, ao notar um outdoor
à frente, em meio à devastação ao redor, preso por uma de suas pernas,
um tanto vergada à esquerda: os traços dos cabelos esvoaçantes da modelo
morena e dos tubos de xampu e condicionador desprenderam-se de seus
verdadeiros traços, formando a imagem de explosões toscas, cenas de
pedaços de traços voejando pelo interior do outdoor que, como disse
anteriormente, às vezes se resumiam em imagens hilárias…
Decidi,
então, vir para cá, no intuito de esconder-me, encontrar um local mais
seguro. Foi só depois de um tempo que consegui decifrar o que os traços
mais baixos da visão do outdoor significavam, quando finalmente a visão
se repetiu em sonho: vi-me soterrado em um casebre, o fogo consumindo o
que restara…
Despertei em puro terror, lembrando-me que jamais conseguira evitar uma das catástrofes exibidas em visão. Então
recolhi o que pude dos pertences que havia levado e ganhei as rochas e a
mata à frente, na esperança de escapar daquela maldita visão… a visão
da minha própria morte.
Ao
chegar à margem de um imenso lago escondido, através da mata fechada, o
seu reflexo atraiu-me, como uma flauta que atrai a serpente.
O
lago agitou-se levemente, formando um marulhar… outra visão surgira,
cujos traços formados pelas diminutas ondas mostravam-me perdido em meio
ao mato, círculos de caminhadas inócuas, e as chamas que me cercavam
cada vez mais próximas…
5
Finalmente
olhei por sobre o ombro, enquanto me mantinha imóvel sob o umbral da
porta de entrada do casebre, avistando o espelho aos pedaços em um dos
cantos.
Pelo menos não terei sete anos de azar, pensei ironicamente.
Ao
volver a visão à frente, ao horizonte longínquo, ouvi um estrondo
distante e grave, minha silhueta foi maculada por uma forte luz
flamejante, um vento quente e intenso fustigou-me… fechei os olhos e
murmurei quase de forma involuntária.
- Maldito Dom!
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