— Zero hora e um minuto.
A voz metálica e monótona ficou ecoando nos ouvidos de Bit.
—
Não acredito! – Disse entre os dentes – merda, merda, merda… – começou a
dar tapas na testa – ainda dá tempo, tem que dar, merda…
No fundo sabia que não ia dar, estava atrasado, só não queria admitir.
— Que horas são? – insistiu, torcendo para ouvir outra resposta.
— Zero hora, um minuto, cinqüenta segundos – respondeu o 2i-g.
Não havia ninguém no local combinado.
— Merda! Liga pro C’F; seguro.
— Criptografia ativada. C’F fora de área, opções: casa; point. Redirecionar?
— Não, merda! O filho da puta me deixou pra trás, e agora? Que porra eu faço?
— Opção 1: ligar para o resgate; opção 2: ligar para polícia; opção 3: ligar para a mãe…
— Cala a boca, porra! Desativar resposta automática. Acessar GPS.
— Posição atual: longitude…
— Não carai; vocabulário customizado.
—
Cê tá no meio da merda da Ammazônhia Global, na margem esquerda do Rio
Negro, longe pra porra da cyber-aldeia Serra do Sol; tempo estimado de
caminhada até achar algum Ponto de Salto LHC, mais de 3 dias, isto é, se
não topar nenhuma merda de eco-milicia; resumindo, cê tá fud…
— Tá, tá. Stand by,
saco – sabia que ia se arrepender de ter comprado este pacote de voz,
devia ter gastado mais alguns créditos e comprado o da Dercy Gonçalves,
era muito melhor que este do carcaju.
Bit; nick-name de
Augusto César Júlio Romano – seus pais eram partidários do
neo-pós-renascimento – estava ferrado; pior ainda, tinha plena certeza
de algo assim ia acontecer deste o princípio. Devia ter ficado de fora
disso tudo; sabia que ia terminar em merda. Roubar água-doce na
Ammazônhia Global. Loucura.
“Só o C’F pra ter uma idéia trash
dessa” – pensou – “e só um idiota como eu pra topar, todo mundo sabe
que a merda da floresta é perigosa; e eu odeio mato” – concluiu.
O
que não queria admitir era que a idéia tinha méritos. Arriscada. Mas
boa. Desde a Crise da Água em 2116, quando se iniciou a dessalinização
da água do mar para consumo, que o valor da água-doce só tinha subido
sem parar. Água dessalinizada tem gosto de “xixi de égua”; Bit
concordava, mesmo sem saber o que era uma égua; o gosto era horrível.
Hoje
em dia água-doce é um item raro. Tanto que desde 2097 a antiga
Amazônia, maior reserva de água-doce do planeta, foi declarada
independente do Brasil pela O.N.U. As nações indígenas que viviam na
região assumiram o controle. Eles não eram “nações”, então nada mais
justo que reivindicassem para si um território independente, um país. O
resultado da contenda jurídica e das ações militares foi a Ammazônhia
Global, mais conhecida com AG, uma nação independente; que só não se
expandiu por toda a Amazônia sul-americana devido à forte resistência da
Federação Chavviana; o Brasil não resistiu e perdeu sua parcela da
floresta, e da água. Todos os rios foram bloqueados e a água rigidamente
controlada. Desde então a política de vigilância das fronteiras só tem
aumentado. Os eco-soldados não perdoam.
Para
piorar o Verde foi declarado sagrado em 2100; se bem que tecnicismos
fizeram sacro só o Verde “verde”, acalorados debates
jurídico-conciliares discutem o tema até hoje, a maioria das vezes as
discussões acabam em mortes. Em 2101 o vegetarianismo foi considerado
subversivo, um ano depois, crime hediondo; foi quando começaram os
fuzilamentos.
“Odeio verde” – resmungou para si mesmo.
Bit
estava sozinho dentro da maior floresta do mundo, e o silêncio era
angustiante, não se ouvia o menor ruído. Toda a fauna estava extinta.
Não existiam mais animais na Terra, de nenhuma espécie, não desde a
Grande Liquefação, em 2102. Insetos inclusive. Cerca de 13,7% de toda a
água-doce do planeta, que compunham os corpos destes espécimes, foi
devolvida ao ciclo natural desta maneira. Só as vacas escaparam, mesmo
assim uma subespécie de tamanho menor. O resto virou água.
Ajudou
pouco, a população mundial atingiu 17,34 bilhões em 2015, as Políticas
Sexuais datam desta época; em alguns países só se permite o sexo homo,
em outros, nem isso. A Igreja só permite que seus fiéis façam sexo
recreativo.
Desanimado,
Bit tirou a mochila das costas e sentou-se na raiz de uma árvore
enorme; fruto de reflorestamento biogenético, claro; abriu a bolsa e
ficou olhando o conteúdo. Cinco garrafas de vidro, cheias da mais pura
água do Rio Negro, a mais solicitada entre os hidrófilos. No black-ibay cada
uma chegaria fácil a P$ 0,75, com um pouco de sorte, dependendo da
oferta de mercado, podia-se vender por até P$ 1,00. Cinco Pesos
Paraguaios. Uma fortuna, nunca tinha visto tantos créditos juntos. Pena
que perdeu a hora do Salto LHC. E o vácuo passou, agora só amanhã.
Tinha que esperar ali até que o C’F voltasse.
O
“vácuo” era uma minúscula falha no sistema de vigilância por satélites
da AG; algo em torno de 0,34 segundo. Tempo suficiente para um “salto”.
Uma anomalia randômica, que seu amigo conseguiu calcular com precisão.
Um segredo que guardava como se fosse a própria vida. O C’F – nick-name
de Carvalho Flores Terra – pais ultrapós-neo-hippies – estava usando
este conhecimento para traficar água-doce, e se encher de créditos,
muitos mesmo, chegou até a espalhar que estava comprando uma Relíquia,
mas isso era só papo, ele não tinha tanto cacife assim, carros são para
uma minoria da elite, todo mundo sabe disso; não tem milho para todos.
— DEU MERDA!!
O
alarme do 2i-g, quebrando o pesado silêncio da floresta, assustou Bit,
que, num espasmo, jogou longe a mochila. O som de vidro se quebrando
chegou aos seus ouvidos, mas foi ignorado. Sua atenção estava toda
voltada para o alarme.
— Qui tá…
—
Acionar exo-traje de segurança – interrompeu a voz grossa do 2i-g –
ativar a porra do laser de proteção em modo de auto defesa…
Em
segundos uma luz azulada envolveu o corpo de Bit; o seu campo de força
pessoal estava ativado. Ao mesmo tempo surgiu, sobre a sua cabeça, um
globo, de uns 20 cm de diâmetro, parecia ser composto da mesma luz do
traje, uma Esfera de Ataque – EA – modelo civil.
— Carai! Qui tá acontecendo aqui?
— A merda do radar de aproximação foi acionado, múltiplos movimentos; mior dar no pé, rapidinho.
— Eco-milicia?
— Num tenho como saber com certeza, mas acho que não…
“A água” – lembrou Bit, indo rapidamente até onde a mochila tinha caído, conforme se movia, a EA o seguia.
Quebradas.
O vidro usado nas garrafas é muito fino, não agüenta nada. “Os merdas
dos puristas odiadores de plástico deviam saber disso” – pensou.
— ESQUERDA!
Bit
se virou na direção indicada, um vulto se aproximava, parecia um
animal, dos grandes, mas não podia ser. A EA efetuou um disparo.
Um
feixe de laser vermelho brilhou na escuridão, atingindo em cheio o
alvo. Que continuou a se aproximar. A luz do exo-traje pulsava levemente
quando algo a atingia; no momento estava piscando como um enfeite de
ecuno-natal. Primitivas flechas e setas se quebravam contra a armadura
luminosa. Bit nem as sentia.
— Luz! – ordenou Bit, com voz titubeante.
Seu
traje acendeu como se fosse uma lâmpada, criando um círculo iluminado
em torno de si. Não eram animais; claro; eram homens, pelo menos
pareciam; estavam nus e andavam curvados, como os gorilas que viu nos
nano-cds de educação, no quarto dia de implante da Semana de
Aprendizagem – SemA.
Mais
disparos. O globo atirava freneticamente para todos os lados. Bit
estava cercado. Eram muitos; tinham o corpo pintado e se moviam em
silêncio, nas mãos portavam o que pareciam ser armas primitivas, que
usavam para alvejar a armadura; não causavam dano nenhum, a maioria dos
projéteis nem acertavam. A EA, por outro lado, nunca errava um disparo –
isso fazia parte da garantia do fabricante.
Curiosamente nenhum deles caia ao ser atingido.
O
feixe avermelhado atingia em cheio, só que não fazia nada, nem a
costumeira fumaça de carne sendo queimada subia, parecia que estava
atirando em árvores – desde a Convenção do Haiti os lasers só podiam
afetar carne; desse modo a santificada vegetação não seria afetada
durante uma guerra – aquilo deixou Bit apreensivo.
“Que tipo de ser humano resiste a um laser?” – se perguntava.
As
muitas lendas urbanas que ouviu sobre a AG invadiram seus pensamentos; a
maioria falava de monstros que viviam na floresta. Monstros horrendos.
Sempre deu risada destas histórias. Não estava sorrindo agora.
A
luz intensa do traje, surgindo de surpresa, pareceu afetar os
agressores, fazendo com que recuassem. Por pouco tempo. Logo se
acostumaram a ela e recomeçaram os ataques, só que, desta vez, nada
silenciosos, começaram a gritar, enlouquecidos, sacudindo suas toscas
armas no ar. Flechas zuniram. Os urros eram roucos, animalescos.
A apreensão se tornou pânico.
Continua…
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