Jen saltou do fly-bus e correu através da rua movimentada. O
holograma, projetado no alto da antiga catedral, mostrava vinte e duas
horas. Na pressa, chocou-se contra um transeunte distraído, o qual
cruzou seu caminho. Esbravejou, sugerindo ao desconhecido que tirasse a
máscara que limitava seu campo de visão. O alerta de nível tóxico havia
sido suspenso há quase uma semana e, ainda assim, inúmeras pessoas
insistiam em se proteger. Aquele, definitivamente, era um mundo regido
pela paranóia.
Avançou, com passadas largas, cortando a grande praça central,
adornada por uma infinidade de esculturas metálicas abstratas, das mais
variadas formas e tamanhos. A chuva, fria, começou a cair. Acelerou
ainda mais o ritmo.
Uma das amplas telas de cristal líquido, espalhadas por quase
todas as esquinas da cidade, transmitia notícias sobre uma pequena área
verde, ainda não devastada, encontrada em alguma ilha da Oceania.
Contudo, Jen não se deteve à informação; seus pensamentos estavam fixos
no computador e na mulher com quem esperava falar em poucos minutos.
Subiu as escadas apressadamente. Passou defronte a entrada dos
outros apartamentos até alcançar o seu, no final do corredor. Passou o
cartão de identificação na lateral da porta e esta se abriu. Jogou a
jaqueta molhada sobre uma poltrona e sentou-se diante do monitor. Ao seu
comando vocal, este acendeu, assim como a luz alaranjada do cômodo.
Seus dedos dedilharam freneticamente o teclado. Era difícil
conter sua ansiedade. A suavidade daquela voz ainda ecoava em sua mente;
ecoara ao longo de todo o dia. Acessou um endereço restrito na web
e digitou sua senha. Percorreu a lista de nomes e enviou uma mensagem.
Tamborilou com os dedos na perna, torcendo para que ela estivesse on-line. Bebeu o restante de uma lata de energético esquecida sobre a mesa, na noite anterior, e aguardou.
Riu, com nervosismo contido, ao analisar sua situação. Não era nenhum novato em chats ou em cyber-zones
de sexo virtual. Relacionamentos à distância eram mais seguros, todos
sabiam. Aqueles eram tempos estranhos e poucas pessoas podiam ser
consideradas inteiramente confiáveis.
Coçou o queixo, a barba por fazer. Ponderou acerca do que
estava tencionando. Expor-se, levar um contato para além da área
virtual. Isso o deixava intranqüilo. Conhecia as regras, os riscos. As
histórias. Todas as histórias. Ainda assim, sentia-se compelido a
ultrapassar a barreira.
Friccionou uma mão contra a outra e deliberou sobre a
possibilidade de desligar o computador e esquecer toda aquela loucura.
Havia conectado somente duas vezes com ela. Não conhecia mais do que seu
primeiro nome e nem tinha a certeza de que este era verdadeiro. Era
absolutamente insensato o que pretendia fazer.
Levantou-se e começou a andar, de um lado para outro, dentro
dos limites da sala. Relembrou, com detalhes, a suavidade de sua face e…
a voz. Doce. Penetrante. Encantadora. A voz. Não podia deixar de
ouvi-la. Desejava nunca mais esquecê-la. Uma espécie de feitiço, um
agradável toque de loucura. “Eu quero você”. As palavras repetiam-se em
uma sucessão infinita, a mesma frase sobrepondo-se constantemente,
tomando todo o espaço, excluindo da mente qualquer outro pensamento.
Uma luz piscou no canto inferior do monitor. Jen sentiu as
mãos frias e o coração palpitar. Quatro letras surgiram na tela: Iara.
Estava preso; sem saída, sem razão. Com um salto, sentou-se na cadeira e
teclou. Palavras brotaram de seus dedos: puras, insanas, sinceras,
desconexas. Sua mão tremia. Precisava concentrar-se, resistir,
entregar-se. Por completo. Para sempre.
A imagem do rosto formou-se à sua frente. Um sorriso. Suor
escorrendo pela testa. Três palavras: “Eu quero você”. Quando? Onde?
Agora!
A mão trêmula anotou o endereço. Ela despediu-se com uma promessa.
Jean tornou a vestir sua jaqueta e correu. Saindo do edifício
ganhou a noite, ainda chuvosa. Não conseguia pensar em mais nada. Sua
mente era um único desejo, seu corpo um único desejo. Acenou para um
táxi e partiu.
Subiu os degraus. A porta da casa estava entreaberta. Uma
mansão, a julgar pela fachada. Adentrou em uma sala escura e silenciosa.
Na piscina, ela disse que estaria. Aos poucos, seus olhos foram
acostumando-se à pouca luminosidade. Seguiu em frente, sentindo um misto
de incerteza e excitação. Seus ouvidos perceberam, ao longe, um gotejar
cadenciado, água em um pequeno chafariz. Dois pares de Vitórias-Régias
flutuavam. Extintas, ele sabia. Pouco importava; apenas a voz preenchia
seus pensamentos. Um chamado. Delicado. Irresistível.
Alcançou um amplo jardim, com flores que jamais sonhara ver.
Em seu centro ela o aguardava, debruçada sobre o beiral da piscina.
Bela. Fascinante. Encantadora. Seu olhar era um convite e seu sorriso
uma benção. “Venha”, murmurou. “Não tenha medo”. Jen aproximou-se,
emudecido, perplexo. Um último instante improfícuo de lucidez fez com
que retornasse à razão, tarde, quando as mãos da mulher, transformadas
em garras, seguravam fortemente suas pernas.
Sentiu o corpo afundando na água fria, cristalina. Pensou ter
visto a longa cauda de um peixe, mas seus pensamentos eram confusos.
Não teve medo. Não esboçou nenhuma reação. Permaneceu imóvel,
mesmo quando a boca, repleta de dentes afiados, fechou-se em seu
pescoço. Percebeu o corpo ser puxado para baixo, a água entrando nos
pulmões e um filete de sangue afastando-se, rumo à superfície.
Pouco a pouco, tudo se tornou escuridão. No final, havia apenas uma voz, uma doce canção.
FIM
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